CANOAS (RS). Um carro que conseguiu retirar de casa antes de a água subir. Algumas poucas roupas, um travesseiro, um cobertor, o celular e o carregador para conseguir dar notícias. E um estacionamento de um posto de combustível. É assim que Vilson Almeida da Silva, de 66 anos, tem ado os últimos dias. Ele teve sua casa alagada no bairro Mathias Velho, em Canoas. “Não sobrou nada”, lamenta.
A cidade faz parte da região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e foi uma das mais afetadas pelas chuvas. Há bairros com quadras e ruas completamente submersas.
Assim como ele, há pessoas que não se adaptaram aos abrigos ou casas de familiares. Geralmente, o incômodo apontado é a superlotação desses locais e a rotina de dependência de voluntários ou de outras pessoas – por receio e sem qualquer causa justificável.
A reportagem de O TEMPO ouviu histórias de que pelo menos três pessoas estão em situação semelhante, dormindo em seus próprios carros em estacionamentos de postos porque veem, ali, um espaço em que se sentem melhor em sua individualidade. O ato desperta um sentimento de solidão e de total incerteza, com doses exageradas de vontade de que tudo isso apenas e – ainda que saibam que a vida como era antes dificilmente voltará.
“Não tem problema [ficar aqui]. Sobre isso aí, a gente não se aperta muito. Só que é outra diferença de vida. A gente está acostumado com a casa, com os cachorros. Tudo muda”, diz Vilson que, após as enchentes que devastaram bairros do dia 3 para 4 de maio, chegou a ar duas noites em casas de familiares, no bairro Guajuviras. É lá que ainda estão sua esposa e seus filhos – um deles, o Felipe, vai para o posto e faz companhia ao pai em alguns momentos do dia.
Foi no terceiro dia após a tragédia que o idoso ou a ocupar uma das vagas do posto. “Aqui tem tudo. Eu fui ali agora ali no Sesc, que é onde a gente toma banho, faz toda a higiene. Aí venho para cá. Só [saio] por aqui. Aí eu vou ali no viaduto, onde tem uns pontos que eles dão comida. Aí vou ali, pego a minha, venho aqui e como. Fico por aqui assim”, conta.
Percorrendo cada rua de Canoas para entender como essas pessoas estão enfrentando a maior adversidade imposta pela vida, a reportagem viu Vilson em dois momentos. No sábado (11), pouco antes das 13h, quando conversou para entender sua história. Ali, durante a tarde, havia movimento tanto no estacionamento em que Vilson estava (que tem uma placa de exclusividade para funcionários), quanto nas bombas de abastecimento do posto e na loja de conveniência.
No domingo (12), por volta de 9h, havia apenas Vilson e seu carro prata, além dos frentistas, mas sem qualquer outra pessoa para compartilhar as vagas do local. O idoso afirma que uma de suas tranquilidades é conhecer quem está por ali. “Esse posto aqui ele é direto, ele tem guarda de noite, e eu conheço o dono, é meu amigo”, relata.
Mas nem assim é possível dormir uma noite inteira, ainda mais com a presença da tragédia no pensamento. “A gente acorda, começa a pensar nas coisas. A gente não sabe o que vai acontecer pela frente aqui. É aquele negócio, a gente tem que saber levar o troço. Se desesperar não adianta, é pior”.
“Depois de ter tudo o que a gente tem e perder em questão de segundos... A sorte é que a minha família conseguiu sair. Eu saí, estamos com vida aqui. Os bens materiais, depois a gente dá um jeito. Demora, mas a gente consegue”, disse. “Se não der, não tem problema. A gente dá um jeito aqui, um jeito ali e vamos indo”, acrescenta.
Nas saídas do carro para se alimentar e tomar banho, Vilson também monitora o nível da água nas casas na esperança de poder retornar. “Disseram que provavelmente antes de 20 dias não vai dar para entrar no Mathias, se parar a chuva agora, né. Está vindo uma chuvarada de novo”.
E é todo esse tempo que ele pretende ficar por ali. “Até poder voltar [para casa]. Ou então quando liberar a estrada ali, que eu puder ir para Sapiranga, aí eu vou para os meus irmãos. Mas continuar tendo contato com a minha família aqui. Isso é muito importante”, observa.
Com uma crença comum aos nossos avós, Vilson lembra que orienta os filhos, ainda jovens, sobre a iminência de desastres em uma espécie de preparação. “Eu sempre falava para os meus filhos, para a minha filha, ‘vocês se cuidem, prestem atenção nas coisas, porque o troço não é fácil, está acontecendo muita tragédia’. Eu expliquei para eles, mas eles são diferentes de nós, né. Eles acham que a gente não sabe das coisas”.
“Tudo foi falado, só que foi rápido aqui. A gente não esperava que a água ia subir em questão de horas. Se é uma enchente que dá tempo de recuperar as coisas, botar um caminhão e tirar, tudo bem, a gente leva o que dá para levar e tira. Mas aqui não deu tempo para nada. Pouquinha coisa a mais, a gente ficava lá”, completa o idoso, em mais um relato de desalento com a situação.