-
Ave extinta por 50 anos volta a habitar maior área de Mata Atlântica em MG
-
Vídeo: moto na contramão atropela criança que saía da escola
-
Cidades - Últimas notícias de Belo Horizonte e Minas Gerais
-
'Só parou de abusar de mim porque não conseguia mais ter ereção'
-
Família procura por idoso de 88 anos que desapareceu após comprar remédio no Funcionários, em BH
Número de moradores em situação de rua cresce em BH; 10% deles dependem de restos e doações
Grupo enfrenta insegurança alimentar e desafios para ar refeições na capital, com impactos na saúde física e mental
Um tijolo e uma pedra delimitam o comprimento de uma tábua de madeira. Sobre ela, pequenos paus queimados e cinzas. “É nosso fogão improvisado”, explica Ademílson Santos, de 42 anos. A um metro dali, uma a e um pacote aberto de macarrão instantâneo revelam a última refeição preparada. O alimento ultraprocessado, desaconselhado por especialistas para o consumo frequente, escancara a realidade de quem vive nas ruas: comer o que tem, quando tem. E o número de pessoas que enfrentam essa incerteza alimentar tem crescido em Belo Horizonte. A constatação é corroborada por populares, estudiosos do assunto e entidades que lidam diretamente com esse grupo.
Os últimos oficiais que estimaram a população de rua de Belo Horizonte foram divulgados em 2024, com resultados de 2022, quando eram 5.300 moradores. No entanto, esses dados já estão defasados. Para a coordenadora da Pastoral de Rua da Arquidiocese de BH, Claudenice Rodrigues Lopes, o crescimento da população em situação de rua é inegável. “A gente percebe a olhos nus, no cotidiano”, afirma. Segundo ela, a instituição atendia, em média, cinco a sete novas pessoas por semana em 2022. Hoje, esse número chega a dez. “Não dá para precisar exatamente, mas é certo que está aumentando”, ressalta. Para a coordenadora, o aumento do número de moradores em situação de rua é multifatorial. “São pessoas que am por condições que vão se precarizando, até chegar ao limite e decidir morar na rua. São pessoas que estão fugindo da violência, que têm condições de saúde não tratadas, que crescem no mundo das drogas. Há também a questão da falta de oportunidade de renda. Sem dúvida, são necessárias políticas públicas nacionais que consigam atender as pessoas em maior situação de vulnerabilidade”, destaca.
Os dados sobre a população de rua são do IV Censo de População em Situação de Rua de Belo Horizonte – 2022, realizado pela prefeitura em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisa também revelou dados sobre a dificuldade alimentar desse grupo de pessoas: para 10% dos entrevistados, doações e restos de comida são as principais formas de conseguir comida. Apesar da disponibilidade de refeições em abrigos e restaurantes populares, 7,2% sobreviviam de pedidos por comida nas ruas. Outros 3,2% tinham como principal fonte de comida a coleta de restos em ruas e feiras.
Além da fome, Ademílson enfrenta um obstáculo extra para conseguir comida: a restrição de mobilidade. Era inverno quando, há cerca de dez anos, perdeu as pernas. Para escapar do frio, abrigou-se debaixo de uma carreta estacionada. O que parecia um refúgio, no entanto, tornou-se um pesadelo. O motor roncou, as engrenagens giraram e, num instante, o abrigo virou sentença. O peso implacável da máquina levou suas pernas.
Hoje, conhecido como "skatista", ele desliza pelas ruas sobre uma prancha de madeira, em busca do que comer. O movimento que antes vinha dos pés agora parte dos braços — da resistência, da necessidade. “Estou sempre correndo atrás. Com muito custo, mas é importante ter fé. Tem dias que a fome aperta, mas a gente se vira. Principalmente por causa dela”, diz, apontando para Bruna Rafaela Machado Evangelista, sua companheira há três anos. Atualmente eles residem juntos em uma maloca na praça Gabriel, no bairro Nova Suissa, região Oeste de BH.
Cabe a Bruna, de 28 anos, preparar as refeições no fogão improvisado, com o pouco que conseguem por meio de doações. Dentro de uma caixa de isopor, algumas folhas de alface e um chuchu dividem espaço com objetos coletados nas ruas. Há também uma couve-flor mofada. “Foi o que ganhamos outro dia. Nem vi que estava assim”, justifica.
Desnutrição agrava problemas da saúde física e mental
A privação alimentar e a falta de o a refeições equilibradas impactam diretamente a saúde de quem vive nas ruas. “São pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, expostas a riscos maiores de infecções e com a imunidade comprometida pela desnutrição”, explica a nutricionista Melissa Luciana de Araújo, doutora em Saúde e Nutrição e integrante do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Belo Horizonte.
“A fome pode causar mudanças psicológicas e psiquiátricas, deixando o indivíduo apático e depressivo. Pode enfraquecer o sistema imunológico, diminuindo a capacidade de combater infecções. Pode aumentar o risco de doenças como pressão alta, doenças cardíacas, diabetes e obesidade, e até ocasionar a morte”, acrescenta.
Distante dos diagnósticos médicos, para quem vive na rua, os sintomas da falta de comida são claros: dificuldade de dormir e baixa energia, atesta Luiz Gustavo, de 36 anos, que está nas ruas desde os 12. “Dormir é complicado. Você rola de um lado para o outro e não consegue. E tem a questão da energia, tem dia que você não consegue nem parar em pé e sair para pedir comida”, destaca.
A dor de ver o desperdício de alimentos também corrói, segundo Luiz Gustavo. “A gente vê pessoas jogando comida nova fora. No lixo mesmo a gente vê muito. Dá uma tristeza, um aperto no coração”, destacou. “Mas é nessas horas que eu sinto que Deus existe, porque eu não sinto raiva ou ódio da pessoa, pois ela talvez não conheça ainda o que é o sofrimento da rua, o que é ar fome”, desabafa.
Restaurantes populares são salvação para metade das pessoas que vivem nas ruas
Em Belo Horizonte, os restaurantes populares são a principal iniciativa desenvolvida pelo poder público para alimentar pessoas em situação de rua. Para 50% desse grupo, esses locais são a principal forma de conseguir comida, conforme dados do IV Censo de População em Situação de Rua de Belo Horizonte.
Fila para o restaurante popular da avenida do Contorno, no centro de BH (foto: Alex de Jesus / O TEMPO)
A quantidade de refeições servidas para esse público também aponta para o aumento no número de pessoas vivendo nas ruas. Em seis anos, o número de refeições gratuitas distribuídas a moradores em situação de rua cresceu 38,34%, saltando de 452.213 em 2019 para 625.612 em 2024.
As companheiras Celi Eduarda de Souza, de 52 anos, e Marielle Pereira, de 42, são parte dessa estatística. Elas se conheceram há 15 anos e, há dois, aram a chamar as ruas do entorno do complexo da Lagoinha de casa. A escolha se deu por problemas financeiros e familiares. Elas dizem encontrar, no restaurante popular, a oportunidade de ter uma refeição digna, mas citam pontos a serem melhorados. “Na hora do almoço, a fila é enorme. São duas a três horas de espera. Além disso, o processo para retirada da ficha para comer é muito demorado”, comenta.
Outra questão é a distância. Antônio Silva, de 38 anos, mora na avenida Vilarinho, na região de Venda Nova. Quando conversou com a reportagem, aguardava o jantar na unidade do restaurante popular da Avenida do Contorno, no centro — uma das duas unidades que funcionam também para café da manhã e almoço. “A comida é boa. Mas nem sempre eu consigo vir até aqui. Hoje, consegui dinheiro para o ônibus e, provavelmente, vou dormir por aqui [no centro] mesmo”, comentou.
Além dos desafios de mobilidade, usuários citam questões estruturais. As filas são longas e sem abrigo do sol e da chuva. A reportagem acompanhou moradores que ocuparam as calçadas da Avenida do Contorno para se proteger da chuva torrencial que caía na cidade. Quando o relógio marcou 17h, horário de abertura do portão, muitos correram em direção à entrada, mas nem todos conseguiram ficar na área coberta. Alguns se molharam.
A coordenadora da Pastoral de Rua da Arquidiocese de BH, Claudenice Rodrigues Lopes, destaca que, embora os restaurantes populares ofereçam uma "alimentação de qualidade", os aparelhos não são íveis para todos. “São pessoas de determinados territórios, em condição de maior vulnerabilidade, que não conseguem sair de onde estão. Além disso, há a questão das filas para conseguir a refeição. Muitas vezes, as pessoas precisam ficar três horas debaixo do sol ou da chuva”, comentou.
A Prefeitura de Belo Horizonte reconhece a dificuldade de ar esse público. “É um grande desafio”, destaca a secretária Darklane Rodrigues Dias, da Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional. Entre os obstáculos, ela cita o fato de ser “uma população que se movimenta na cidade e não tem residência fixa”. A gestora ressalta que é um compromisso da pasta manter as refeições nos restaurantes populares ao preço de R$ 3, além da gratuidade para os moradores em situação de rua.
A secretária destaca, ainda, que o município promove outras iniciativas de apoio alimentar para moradores em situação de rua por meio das entidades assistenciais e abrigos cadastrados. “Temos uma equipe de nutricionistas que elabora o cardápio, com supervisão”, reforça.
Esforço conjunto
Garantir uma alimentação digna para pessoas em situação de rua exige um esforço conjunto entre poder público, terceiro setor e sociedade civil. Para a nutricionista Melissa Luciana de Araújo, a insegurança alimentar deve ser combatida por meio de políticas públicas integradas que promovam moradia, saúde e inserção no mercado de trabalho. "O fato de alguém estar na rua não significa que deve ter o apenas a alimentos de pior qualidade. Estamos falando de pessoas que possuem histórias, vivências, tristezas e que sofrem preconceitos diariamente”, ressalta.
Além dos restaurantes populares, a especialista cita as cozinhas comunitárias, programa que começou em abril de 2023, no Aglomerado Cabana do Pai Tomás, distribuindo 350 refeições por dia. A Prefeitura de Belo Horizonte pretende expandir o projeto das cozinhas comunitárias para todas as nove regionais da cidade, com objetivo de garantir alimentação segura e educação alimentar.
Histórias como a de Jorge Comper Santana, de 32 anos, mostram como o o a moradia e apoio social podem transformar vidas. Natural do Espírito Santo, ele sempre teve uma vida estável financeiramente, com curso superior e emprego fixo. Mas, em 2020, a pandemia tirou sua fonte de renda. Sem alternativas, ou a viver nas ruas de Belo Horizonte, onde sua alimentação se resumia a uma refeição por dia, geralmente composta por alimentos ultraprocessados, que saciavam a fome de forma rápida e barata, mas com baixa qualidade.
“A virada veio no fim de 2022, quando conheci a Pastoral do Povo da Rua. Comecei participando de rodas de conversa e, com o apoio do programa, consegui o a moradia e tratamento de saúde pelo SUS”, diz. Hoje, Jorge está em processo de capacitação profissional, fazendo cursos de informática e empreendedorismo, além de atuar como organizador de oficinas na pastoral.