Naquele vazio, parecia que era tudo para ela. Levada pela irmã, a história de uma vila de ratinhos que enfrentava o malicioso Dom Gatão a arrebatou. O terno e o par de sapatos emprestavam um tom cômico à personagem. A luz das lâmpadas e dos abajures nascia do papel celofane. No princípio não era o verbo, mas a música. As primeiras lembranças de Grace ô, 44, Inês Peixoto, 63, Rejane Faria, 63, Gláucia Vandeveld, 64, e Ione de Medeiros, 82, no teatro se confundem porque guardam algo em comum: o fascínio por aquilo que, a partir dali, as acompanharia pelo resto da vida.
“Eu era criança ainda e me lembro que não tinha ninguém na plateia do (teatro) Francisco Nunes, o que me deixou muito impressionada, porque eu adorei a peça e sentia que ela estava sendo feita só para mim”, recorda Grace. Com 7 para 8 anos, Inês Peixoto assistiu à histórica montagem de “Liderato, O Rato Que Era Líder”, em plena ditadura, ainda sem compreender o caráter político das artimanhas dos roedores para se livrar da opressão e desobstruir a ponte onde buscavam comida. “Na hora pensei: ‘quero fazer isso’. E foi se firmando a minha tendência para ver o mundo através do teatro”, conta Inês.
Na sétima série, Rejane Faria escreveu um drama familiar que tinha como tema o uso de drogas, e interpretou “o pai da família” utilizando as vestes características, o que, segundo ela, concedeu “humor a um assunto sério…”. “Aquilo me deu muito prazer, mesmo sem ter noção do que de fato era o teatro, mas houve uma comunicação sincera, e este é um ponto essencial na cena”, relata Rejane.
Gláucia Vandeveld vivia numa pequena cidade no interior de São Paulo quando, levada pela intuição, transformava a precariedade em magia, ao lado de uma trupe de amigos. “A gente pintava a cenografia, construía o cenário, criava a iluminação, tudo artesanalmente, juntos. ava a tarde fazendo essas coisas. Acho que essa mágica, esse lugar coletivo, foi o que ficou de mais forte para mim”, reflete Gláucia.
Pioneira
Desde os seis anos, Ione de Medeiros tinha o piano como companhia, o que a auxiliou a se aproximar do Grupo Oficcina Multimédia, criado pelo compositor Rufo Herrera, em 1977, dentro do Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “O texto não era a referência primordial, já era um teatro diferente. No primeiro elenco, tinha gente da área de história, artes visuais, dança”, enumera Ione, que, em 1983, após uma série de montagens, assumiu a direção do grupo, com a decisão de Rufo de enveredar pela música. Antes disso, porém, ela estreou um espetáculo na Fundação de Educação Artística, integrando a programação do Concerto Misto, coordenado por Berenice Menegale.
A partir do poema “Notícia da Morte de Alberto da Silva”, de Ferreira Gullar (1930-2016), Ione e mais “quatro mulheres inexperientes” tomaram a ribalta com o “experimento” que a marcou, sobretudo, pela insegurança. “A gente ficava adiando a nossa entrada no palco, porque tinha muito medo da reação do público”, ite Ione, que foi surpreendida pela aclamação da plateia e a saraivada de palmas. Habituada a se apresentar como musicista, ela cultivava o desejo de explorar outras manifestações de seu agrado, como cinema e dança.
“Quando o Rufo veio com a proposta do Oficcina Multimédia, eu abracei imediatamente porque, na realidade, o piano é essencialmente solista, claro que existem possibilidades de tocar com grupos de câmara e orquestra, mas, pela própria complexidade do instrumento, ele acaba ficando num lugar solitário. E eu queria uma experiência coletiva, que foi o que me atraiu para o teatro”, diz Ione.
Coletiva
A tradição de grupos e coletivos no cenário teatral de BH é destacada por Inês Peixoto, que, a partir de 1992, ou a integrar as fileiras do Grupo Galpão. Ela relembra a força do teatro político na década de 1970 e o predomínio do “besteirol” nos anos 1980. “Havia poucas mulheres diretoras. A Ione já estava à frente do Multimédia. A Cida Falabella era uma figura importante na Cia. Sonho & Drama. O Galpão tinha a Teuda (Bara) e a Wanda (Fernandes), mas, ainda assim, havia muito mais homens à frente dos grupos”, constata Inês, que percebe uma nítida alteração nesse panorama, e dá, como exemplo, o caso de Bia Apocalypse, que assumiu o Giramundo após a morte do pai, Álvaro Apocalypse (1937-2003).
“Hoje, vejo a mulher com uma força muito maior e toda a cena está mais diversa, se abrindo, inclusive, para a periferia. Ainda temos que caminhar muito nessa inclusão, mas houve avanços”, avalia Inês. Acostumada com processos em que a direção e a dramaturgia am pela experiência coletiva no Grupo Galpão, a atriz assinou, em 2019, o seu primeiro espetáculo solo. E foi bem sucedida. “Órfãs de Dinheiro” acabou laureada com o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), conquistando crítica e público. “O texto nasceu do desejo de escrever histórias que pudessem ar pelo meu corpo como ele é hoje”, resume Inês.
Para Gláucia Vandeveld, a direção veio “como consequência do lugar de professora”. Embora tenha atuado na função, ela confessa que ainda sente “certa dificuldade” em se dizer diretora. Gláucia tem se dedicado a estudar e, junto ao coletivo “Mulheres Encenadoras”, discutir “esse espaço”. Em “Casa”, mais recente espetáculo da Zula Cia. de Teatro, formada por Gláucia, Talita Braga, Andréia Quaresma, Kelly Crifer e Mariana Maioline, cada atriz escreveu a sua própria cena e todas compartilharam a direção. “Estamos assumindo nossas pautas e criando os meios para realizar”, pontua Gláucia.
Negra
Premiada como dramaturga pelas encenações “Por Elise” e “Vaga Carne”, Grace ô localiza essas conquistas no âmbito da luta social. “O teatro se insere na nossa realidade, que tem um histórico de patriarcado e machismo visíveis”, salienta Grace, que enaltece a potência da criação teatral negra da cidade, “que é muito viva, com uma contribuição gigantesca”. “É impossível falar de um teatro negro sem falar das mulheres negras, que estão na base dessa produção”.
Rejane Faria corrobora. Há poucos dias, ela prestigiou a montagem “Marku Musical”, sobre o músico Marku Ribas, cuja “trajetória genial” é resgatada “em um projeto gerido por mulheres”. “Para nós, mulheres pretas, o teatro é um espaço de manifesto o tempo todo. “Nossos corpos já dizem tudo e nossa palavra vem de um lugar de dores muito ignorado, mas que dá a dimensão do que vivemos no ado e do que queremos para o futuro…”, declara Rejane.
Com o Grupo Quatroloscinco, ela investe numa pesquisa continuada de atuação e direção coletiva, iniciada em 2009, que rendeu seis espetáculos de impacto e “concretizou o sonho” que Rejane começou a tatear no teatro amador dos Correios, onde trabalhava. Ao lado de Assis Benevenuto, Marcos Coleta, Ítalo Laureano e Maria Mourão, a atriz participa de todas as etapas da elaboração dramatúrgica. Conhecida do grande público como a mãe do filme “Marte Um”, agora, em 2024, ela pretende, “dar uma desacelerada para ter novas ideias e reabastecer as energias”.
O que está longe de significar distância do palco. No dia 3 de julho, Rejane e sua companhia encerram a retrospectiva dedicada a Fellini no Cine Humberto Mauro, com uma invenção que une cinema e teatro, batizada “Sombra e Neblina”. E logo parte para as comemorações de quinze anos do Quatroloscinco, cuja próxima peça inédita promete vir à baila em 2025.
Cena
Gláucia Vandeveld não hesita ao ser questionada sobre os desafios da atividade teatral. Do alto de seus 40 anos de carreira, ela vai direto ao ponto: “Falar em teatro e facilidade não combina, né? Os processos são sempre desafiadores. A briga, a luta para colocar um projeto em pé”, sustenta. Nenhum momento foi mais tenso em sua trajetória do que a angústia propiciada pela pandemia de Covid-19, “que nos afastou a todos”, sublinha. “Eu tive a sensação de que o tempo iria correr muito depressa, e que, por estar envelhecendo, talvez não conseguisse voltar para o palco. Isso me ou pela cabeça várias vezes”, desabafa. Inicialmente descrente, Gláucia logo se convenceu a prosseguir, com “encontros prazerosos e fortalecedores”, no modo virtual.
“Ficamos dando aula de teatro online. Quando a gente fala isso, parece um absurdo imenso! Mas aconteceu, foi interessante e rico também. Isso me fez acreditar que o teatro realmente tem uma força gigantesca”, exalta Gláucia. Atualmente, ela percorre as casas de teatro da capital e constata “que estão todas cheias, estava todo mundo ávido por esse reencontro presencial”. Grace ô avalia como oscilante o cenário teatral de Belo Horizonte. “Às vezes tem muitas produções, noutras vezes menos, e isso tem a ver com uma relação estreita com a política pública. Existe uma produção grande que vem das companhias teatrais e de uma juventude disposta a criar. É um cenário que sobrevive muito da disposição dos novos e velhos artistas”, salienta Grace.
Inês Peixoto aponta a formação de público como um ponto a ser melhor trabalhado. “Temos que buscar, cada vez mais, uma parceria entre teatro e educação. Para que haja essa compreensão, desde pequeno, do que o teatro representa artisticamente, para além do entretenimento, como uma ferramenta de diálogo, troca, experiência. É importante a gente fortalecer o vínculo com as escolas para a formação de crianças e adolescentes que consigam sentir o teatro como esse lugar de convivência e potência artística”, pleiteia a atriz do Grupo Galpão. Rejane Faria retoma a crítica à “falta de políticas públicas que fomentem” a tendência à criação de coletivos na capital mineira, que “desgasta muito os grupos existentes e impede a formação de novas companhias”.
“Formam-se muitos atores todos os anos, e os espaços e a formação de novos coletivos estão sucateados. Como bons mineiros, vamos nos virando, utilizando aquilo que é viável da máquina pública e criando possibilidades com recursos próprios, sempre focados em contribuir com a cultura do nosso Estado, da nossa cidade, com espetáculos e ações relevantes para a manutenção e a formação de público”, postula Rejane. Concomitante ao originário movimento de grupos que ainda perdura, Ione de Medeiros se detém frente a uma mudança inevitável. “A vida mudou, é mais difícil você ter um grupo que dê continuidade a seus trabalhos, pela dificuldade financeira. Então, essa manutenção ficou prejudicada”, informa a pioneira diretora do Oficcina Multimédia.
Esperança
Apesar das dificuldades, todas seguem na ativa. Em 2024, Ione tem colhido os frutos da aclamação em torno da versão para “Vestido de Noiva”, clássico de Nelson Rodrigues (1912-1980) que rendeu a ela o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como melhor diretora, além de uma indicação ao conceituado Prêmio Shell. “Tudo isso expandiu bastante a visibilidade do espetáculo, viajamos para várias cidades”, comemora Ione, cuja intenção é produzir uma trilogia rodrigueana. Gláucia Vandeveld gesta um projeto com os atores Adyr Assumpção, Cláudio Dias e Camila Felix e, em agosto, retoma a direção de “Tríade”, peça interrompida devido à pandemia.
Para completar, viaja com a Zula Cia. de Teatro, que celebra 13 anos de estrada. “Estou aberta para o que mais aparecer, sou muito trabalhadeira”, garante. Grace ô finaliza um filme que ela dirigiu em BH, previsto para o ano que vem. Ao mesmo tempo, acompanha a circulação de outros dois espetáculos com a sua direção, no caso “o fim é uma outra coisa”, atração do Festival Internacional de Teatro (FIT-BH), e “Herança”, homenagem a meio século de carreira de Mauricio Tizumba. Como se não bastasse, dirige uma ópera no Theatro Municipal de São Paulo, protagoniza o longa-metragem “A Professora de Francês”, de Ricardo Alves Jr., atua em séries feitas para as plataformas digitais, e ainda prepara um novo espetáculo, que estreia em 2025.
A excursão de “Cabaré Coragem” mantém Inês Peixoto e o Grupo Galpão na estrada. Outra turnê é a de “Till, a Saga de Um Herói Torto”, esta pelo Vale do Jequitinhonha, no interior das Minas Gerais. Em breve, eles iniciam uma adaptação de “Ensaio Sobre a Cegueira”, obra-prima do português José Saramago (1922-2010), capitaneada pelo diretor e dramaturgo Rodrigo Portella. “Estamos muito animados com esse projeto!”, declara Inês. Rejane Faria encerrou recentemente as gravações da série “Pablo e Luisão”, do Globoplay, com direito à participação especial, aos 94 anos, de Lima Duarte. Em julho, ela entra em estúdio para as filmagens de um longa da Globo Filmes.
Inspirar
Marília Pêra cunhou uma observação que nunca mais deixou o pensamento de Inês Peixoto. “A pessoa pode nascer com um grande talento, mas, a maioria de nós, somos simples mortais, nossa paixão a pelo trabalho, temos que afinar a nossa sensibilidade”, recorda. “E ela era uma atriz extraordinária!”, complementa Inês, que, além da iração pela atriz carioca, se inspirava no teatro político de Augusto Boal, na irreverência do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone e nas atuações de Diogo Vilela. “Esse lugar do tragicômico sempre me interessou”, pontua Inês.
Embora mais nova, Grace ô é uma referência para a amiga Gláucia Vandeveld. As duas trabalharam juntas no grupo espanca!, experiência única que “virou uma chave” na maneira de Gláucia se relacionar com as artes cênicas. “Me trouxe um lugar de pensar o momento, o hoje, o agora, numa perspectiva da urgência do discurso político”, afiança Gláucia, que também cita Ione de Medeiros como farol. Dirigida por Mônica Ribeiro, Cida Falabella e Luiz Arthur, a atriz Rejane Faria foi, aos poucos, “construindo o mapa” de sua trajetória, “experimentando a dramaturgia e a direção”.
“Sempre me senti muito atraída pelo teatro, curiosa mesmo, encantada. Quando tive a oportunidade de experimentar, não tive dúvidas, e comecei a perceber que havia muitas coisas além das imagens, da estética e das palavras que me chamavam tanta atenção. Existia naquele ofício uma responsabilidade intelectual e social para que algo fosse construído”, arremata Rejane, no ímpeto de seu sonho real.