Bituca escolhe uma palavra pequena para representar Esperanza: “Luz”. E, em seguida, a alça às alturas. “Ela é uma das maiores artistas que o mundo já conheceu, e, além disso, tem uma luz que é única”, proclama. Não é difícil verificar as palavras de Milton Nascimento. O sorriso aberto e matreiro de Esperanza Spalding parece confirmar a energia do som que emana de seu instrumento.
A contrabaixista norte-americana e o músico brasileiro acabam de lançar “Milton + esperanza”, álbum que coloca no mesmo palco fã e ídolo. Ela, aos 39 anos, há tempos consolidou-se como uma das mais proeminentes artistas do jazz contemporâneo. Ele, do porte de seus 81 anos, coroado ao redor do mundo com sua voz divina, agora descansa solene.
Quando peregrinou pelo planeta com a turnê de despedida “A Última Sessão de Música”, em 2022, Milton deixou claro o que ele torna a repetir. “É como eu disse na época em que anunciei minha aposentadoria. Me despeço dos palcos, da música jamais”, sintetiza. Apesar disso, o astro recentemente surpreendeu Esperanza.
Os dois participaram de uma gravação feita no primeiro andar da casa de Milton para o quadro “Tiny Desk”, dedicado a registros intimistas, da Rádio Pública Nacional dos Estados Unidos, a NPR, e já disponível no YouTube. Na ocasião, quando alguém da emissora os questionou sobre a possibilidade de shows, Esperanza estava pronta para balançar a cabeça negativamente, “mas Milton disse: sim, talvez sim”, relembra a instrumentista.
“Então, acho que a resposta é: veremos, ainda não sabemos”, complementa ela. No momento, o que eles querem é curtir “esse lindo álbum, um presente para nós e para todos que o amam”, afirma Esperanza, que não tem dúvidas de que Milton é reverenciado “mundialmente, adoro essa palavra!”, diverte-se ela, que comparece no disco cantando em um português exemplar, mas, nesse caso, adota a modéstia.
“Me sinto um pouco envergonhada porque estou no Brasil há muito tempo, falo português há mais de 20 anos, mas ainda não aprendi realmente”, declara. Esperanza cursou o idioma durante um semestre, numa escola de Boston, onde dá aulas na renomada Berklee College of Music, e revela que “fora isso, o que sei de português é de ouvir música, conversar com os amigos, com o Bituca”. “Talvez lá para os 65 anos, eu aprenda de verdade”, diz.
Repertório 5u275b
Milton conta que o trabalho “foi feito da forma mais natural possível”. “Esse é um disco de muita conversa entre a gente, e, assim, as coisas foram acontecendo. Quando vimos, tudo já tinha tomado seu rumo”, constata. Esperanza também se deixou levar pela intuição ao compor “Wings For The Thought Bird”, uma das inéditas do disco, feita com o pensamento, e, sobretudo, a emoção mirando Milton.
“Eu comecei a escrever essa música e não sabia o que estava escrevendo. Quando escrevo, tento não controlar a música, porque elas têm vida própria, sua própria lógica e organização. E, quanto mais eu escrevia, mais estranha a música ficava. Cheguei a pensar que não poderia colocá-la no disco, porque era muito louca”, ite. Até que chegou uma visita.
Wayne Shorter, que a apresentou à música de Milton quando Esperanza teve contato com o histórico LP “Native Dancer”, de 1975, perguntou o que ela estava fazendo. Desconcertada, a contrabaixista tentou explicar sobre a irracionalidade da composição. “E Wayne disse: ótimo, continue!”. “Ele estava sempre nos desafiando a ser mais livres, a ir mais longe. Então eu disse: não importa o que aconteça, vou incluir essa música no disco”, sublinha Esperanza.
A presença de Wayne Shorter, que se converteu em parceiro primordial de Milton e faleceu em março de 2023, aos 89 anos, não se limitou a esse impulso. Durante a agem da derradeira turnê de Bituca por Los Angeles, ele e Shorter se encontraram como velhos amigos, e, ao se despedirem, o brasileiro abriu a janela do carro para gritar para o americano: “Nam-myoho-renge-kyo!”, uma saudação de origem oriental e budista, e que significa “a lei que rege todo o universo!”.
“Eu queria incluir na música a última coisa que Milton disse para Wayne, então é isso que você ouve na faixa, esse é o canto por baixo dos sons”, entrega Esperanza, que sempre teve Shorter como seu principal mentor, numa relação afetiva e musical na medida do afeto por Milton, explicitando o sentimento que conduz esse novo álbum.
“Como tudo nesta terra, cada pessoa, cada objeto, cada elemento possui um centro. E há uma verdade nesse centro. Talvez seja uma verdade universal, talvez não. Mas sinto que Milton está diretamente ligado ao centro da verdade. E é amor. Mesmo que ele não diga em todas as músicas, o centro do universo, a verdade última é o amor. Nós sentimos isso em sua música e em sua voz. Mesmo que o nosso cérebro não entenda isso conscientemente, o espírito compreende sua música”, afiança Esperanza.
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Milton presume que “a amizade com Esperanza já tem mais ou menos uns quatorze anos”. “E desde nosso primeiro encontro, aqui mesmo, no Rio, nunca mais nos desgrudamos. A partir disso, já foram uma porção de shows, gravações, viagens, enfim, muita coisa juntos”, enumera. Em 2010, Milton participou do disco “Chamber Music Society”, de Esperanza. No ano seguinte, os dois dividiram palco no Rock in Rio.
Mais ou menos na mesma época, Esperanza conheceu Guinga, com quem gravou “Ligia”, de Tom Jobim, para o álbum “Porto da Madama”. Em 1993, Guinga compôs “Saci” pensando na voz de Milton, e sugeriu ao letrista Paulo César Pinheiro apenas uma palavra: “retinto”. Agora, o trio une seus laços na regravação para esta música sobre o folclórico personagem tupiniquim, com direito à saborosa gargalhada de Milton.
Outras participações especiais incluem Tim Bernardes, Maria Gadú, a cantora inglesa Lianne La Havas e Lula Galvão, que Esperanza conheceu por meio da violonista Rosa os, numa coletiva versão para “Saudade dos Aviões da Panair”. A Orquestra Ouro Preto marca presença em “Morro Velho” e “Wings For The Thought Bird”, enquanto Dianne Reeves comparece em “Earth Song”, hit de Michael Jackson escolhido por Milton para o repertório, assim como “A Day In The Life”, dos Beatles.
Da lavra atemporal de Bituca ainda há “Cais” e “Outubro”, que se revezam com outras criações de Esperanza. O ineditismo mais chamativo é “Um Vento ou”, homenagem de Milton, com letra de Márcio Borges, para Paul Simon, que atendeu ao chamado e dá as caras cantando em português. “A retomada da amizade” com Simon aconteceu em 2022. Novamente, Milton rememora a histórica temporada de “A Última Sessão de Música” pelos Estados Unidos. Os dois já haviam gravado juntos em 1987, e em 1990.
Esperanza retoma uma recente declaração de Simon para o jornal The New York Times. “A maioria dos músicos que têm alguma relação com o jazz, a criação e a poesia conhecem o Milton, você não pode manter algo assim em segredo”, recupera a contrabaixista. Para ela, por sinal, Bituca é autenticamente “um músico de jazz”.
“Ele começou como baixista, escreve, gravou e toca com músicos de jazz, tem uma sensibilidade jazzística, assim como Djavan, Gilberto Gil, Tânia Maria”, compara. “Acho que nos sentimos como irmãos que tiveram uma jornada ancestral semelhante, vindos de África para uma terra estrangeira sob o domínio político e social do povo europeu. E a forma como o jazz se desenvolveu nos Estados Unidos é parecida com o que ocorreu com o samba e outras manifestações culturais afro-brasileiras…”, arremata Esperanza.