Uma das estreias de hoje nos cinemas, “Othelo, o Grande” não traz depoimentos. Muito menos uma narração em off para facilitar o entendimento cronológico da história de um dos maiores atores do país, falecido há 31 anos. A produção lança mão de um expediente ousado, valendo-se das imagens de filmes, novelas e programas para servir de guia ao espectador.

“Quando comecei o projeto, há dez anos, fiz algumas entrevistas, como Paulo José e Zezé Motta. Aí comecei a montar com um material que achei dele, a partir do que ia sendo citado, e fiz uma espécie de piloto. Quando partimos de fato para a pesquisa de imagens, pedi a Beth Formaggini que queria ver tudo dele”, lembra o diretor Lucas H. Rossi.

Esse pedido quase fez a pesquisadora cair pra trás, já que, em se tratando do ator mineiro (nascido em Uberlândia em 1915), o que não falta é imagem. Ele está presente desde as comédias da Chanchada até produções do Cinema Novo, ando por novelas e programas de TV – quem não se lembra de Eustáquio e o bordão “Aqui. Que queres?” em “A Escolinha do Professor Raimundo”?

“Ela foi logo dizendo: ‘Cara, você vai me ferrar né?’. E foi assim: a Beth ficou anos pesquisando, entregando o material aos poucos. E quando eu vi esse tudo, deparando-me com Otelo contando a sua própria história de várias formas e em vários momentos diferentes, percebi que ele podia fazer isso sozinho. Foi quando me apaixonei por essa ideia”, explica Rossi.

A sensação do cineasta foi de descoberta. O o seguinte é definido pelo diretor como um trabalho de psicografia. “Foi uma busca de psicografar o que ele gostaria de falar sobre ele”, assinala. Nesse sentido, um tema que saltou aos olhos é a questão racismo, que pontua boa parte do documentário, lançado no ano ado no Festival do Rio.

“Como me deparei com Grande Otelo de diversas formas, eu fui reparando uma coisa que quem falou foi a Zezé Motta. Ela lembrou que tinha uma galera que dizia que ele não se importava com questões políticas e sociais. Na verdade, ele tanto se importava que foi o primeiro de nós a falar (sobre racismo), abrindo esse lugar para gente”.

No filme, há uma entrevista em que Otelo fala que, ao frequentar uma sala de cinema, sofria preconceito, mesmo quando eram filmes protagonizados por ele. “Assim vemos um ator que se apresenta como uma liderança da raça naquela época, no Brasil. Por isso insisti muito para que esse tema fosse um protagonista da história dele”, sublinha.

Em outro momento presente no documentário de Rossi, Otelo fala da discrepância salarial entre artistas negros e brancos. ‘Ele conta que ganhava menos do que a outra pessoa que contracenava com ele no Cassino da Urca, no Rio de Janeiro. Ali, ainda garoto, ele viu o que seria uma constante na vida dele: a exploração”, lamenta Rossi.

Outros retratos dessa exploração surgem quando, no pós-Chanchada, Otelo fica sem trabalho, “mesmo sendo aquele ator genial, enorme, depois de feito milhões de coisas”, e no fim da vida, “já cabisbaixo, triste, melancólico, visivelmente prejudicado de grana e sem importar com o papel que iria fazer”, nas palavras de Rossi.

“Esse é o grande poder do filme de arquivo, que é a possibilidade de colocar as imagens para conversarem entre si. A interpretação é aberta. Muitas pessoas do público criaram várias relações que eu não tinha pensado durante a construção. É uma forma de fazer um filme que é narrativo, que lhe diz muitas coisas, mas que deixa outras camadas em aberto”, pondera.

Uma das preciosidades do filme, na avaliação do cineasta, é uma sequência de imagens em que Grande Otelo aparece dentro de um carro e, ao ar pela rua Afonso Pena, no Rio de Janeiro, explica a razão de ser artista. “Lá ele via os artistas de teatro comendo bife a cavalo, achando aquilo muito bonito e legal. E decidiu ser artista por querer comer bife a cavalo”, aponta.

Apesar da fartura de material, algumas lacunas não foram preenchidas pelo cineasta. Uma delas é o livro de poemas intitulado “Bom Dia, Manhã”, um dos últimos trabalhos de Grande Otelo antes de falecer, em 26 de novembro de 1993, aos 78 anos, em Paris, vítima de um enfarte fulminante após desembarcar no aeroporto Charles de Gaulle. 

“Havia um material de canal de TV, em que ele tinha gravado um poema que eu tinha achado muito lindo, chamado ‘Ribalta Apagada’. Queria ele para o final do filme, Fiquei com isso na cabeça por anos. Tentei achar os arquivos, mas eles não apareceram. Fazer filme de arquivo tem disso, tem que fazer escolhas com que tem”, afirma.