Marina Lima volta a BH com o show ‘Rota 69’ e interessada nas ‘questões que ficam’
Artista apresenta, no Palácio das Artes, o espetáculo em que rea sua trajetória na música e homenageia o irmão, Antonio Cicero
“O que me interessa é tentar descrever o meu tempo. E o meu tempo é um tempo que não é datado. É um tempo de pau-sas, acelerações e freadas bruscas. É o tempo da vida. Com a minha música, os meus discos, a minha obra, sempre busquei soar livre, contemporânea”.
As palavras são, de certa forma, mais que um olhar para sua obra, uma definição de Marina Lima por ela mesma.
Mulher que, no período de reabertura democrática, na década de 1980, convidou multidões a abrir os braços e fazer um país, em versos que hoje ganham novos sentidos ao serem apropriados pela comunidade LGBTQIAPN+; que subverteu com graça o clássico “Mesmo que seja eu”, do cancioneiro de Erasmo Carlos, encaixando uma pausa estratégica entre os versos “Você precisa de um homem pra chamar de seu” e “Mesmo que esse homem seja eu”; Marina Lima segue, perto dos 70 anos, livre, contemporânea, interessada pela vida – e já pensando em um novo álbum (veja mais em “Novidades”).
É esta artista que, nesta sexta-feira (30 de maio), sobe ao palco do Grande Teatro Palácio das Artes, o mais tradicional templo da cultura em Belo Horizonte, para o show da elogiada turnê “Rota 69”, em que troca o 66 da famosa rodovia norte-americana, tratada como símbolo de liberdade da juventude dos EUA, onde ela viveu a infância, pelo número que representa a sua idade atual – e, claro, brinca também com a dimensão do “eros”.
“Tenho um carinho enorme por BH e pelos mineiros. Cantar no Palácio das Artes é sempre uma alegria para mim. Adoro esse lugar!”, celebra Marina, que ou pela cidade no ano ado para uma participação em um show da amiga Letrux. Antes disso, sua última apresentação na capital havia sido em 2022. Mas o flerte entre artista e a capital é permanente. “Fui convidada para cantar com esse bloco de carnaval (o ‘Truck do Desejo’, liderado por mulheres lésbicas, bissexuais e trans) e não deu certo porque tinha outro compromisso na data. Uma hora vai dar!”, vibra, agradecida pela reverência dessas folionas belo-horizontinas por sua obra. “Faço parte da comunidade LGBTQIAPN+. Essa luta é minha também. Hoje, os jovens podem ser o que eles quiserem e isso me deixa cheia de orgulho, porque assumi minha bissexualidade ainda jovem e, na época, era um problema”, constata.
Agora, Marina prepara cada detalhes para o próximo encontro com a cidade. “Gosto de instigar a minha criatividade e, como tenho 22 discos lançados, muita coisa podia entrar no repertório. Então, o que fiz foi escolher!”, examina, para, em seguida, dar pistas da seleção que fez. No repertório, diz, tem as músicas que a plateia gosta de cantar, os clássicos feitos com seu irmão, Antonio Cicero, falecido em outubro do ano ado, músicas que fez com outros parceiros, alguns rocks e releituras, como “Lunch”, de Billie Eilish.
“É um show grande para públicos grandes. E as pessoas estão interessadas também em outras questões, não só de ouvir sucessos. Então, independente de tocar ‘Fullgás’, ‘À sa’, ‘Uma Noite e Meia’ e outras músicas mais conhecidas, coloquei também algumas que são igualmente importantes para mim e, mesmo não sendo tão hits assim, falam de coisas que me interessam e interessam quem gosta de música e gosta da vida”, aponta, orgulhosa do formato a que chegou no projeto idealizado e dirigido por Candé Salles, cujo roteiro teve contribuições de Fernando Muniz e Renato Gonçalves – este último autor do livro “Fullgás - Marina Lima”, publicado pela editora Cobogó em 2022.
Homenagem
O apanhado musical, analisa Marina Lima, captura bem um desejo constante de seu trabalho: falar de assuntos da ordem do “para sempre”. “Minha Praia é falar de sentimentos. Os costumes mudam, mas as questões não. Então, as questões estão sempre presentes no meu repertório”, reflete.
E é no horizonte do intangível, das coisas findas que ficarão, que está localizada a relação de Marina com o irmão e parceiro artístico Antonio Cicero.
Compositor, poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), ele sofria de Alzheimer e se submeteu a um procedimento de morte assistida, na Suíça, deixando uma carta para amigos e familiares explicando a sua decisão. O legado dele, merecidamente, é reverenciado no show.
“O ‘Rota 69’ é um show sobre a minha trajetória, sobre a minha rota até agora por aqui, e faz parte dessa rota alguém imenso que permeou toda minha vida e obra: Cicero”, define Marina. “Eu e Cicero criamos uma obra juntos! Fizemos muitos discos e canções. Ele partiu repentinamente para todos, para mim. Mas sua presença está por toda parte”, estabelece, inteirando que os dois foram irmãos na vida e na arte e que nada de entre eles era estranho um para o outro.
“Estou bem. Entendo meu irmão. Cicero foi coerente com tudo que pensava. Foi coerente com sua obra. Eu fico por aqui. E me sinto potente para a próxima parada”, avisa. E o seu público sabe. “Sempre fui muito verdadeira. Tive depressão. Perdi a voz. Parei de cantar por um tempo, voltei quando melhorei. Agora, minha voz voltou de novo. Superei a depressão e me sinto inteira no palco! Tenho adorado fazer shows”, narra, ao relembrar um período turbulento de sua história, que, superado, foi seguido pelo encontro com uma plateia que lhe abre os braços.
“Meu público cresceu de novo. Os shows estão lotados, estou bem feliz. Acho que a minha renovação artística vem dos jovens. Minha relação com os jovens é de troca. Eles entenderam as músicas que fiz durante esses anos todos e pegaram essas músicas para eles. O que faço é retribuir da melhor forma, que é estar inteira no palco para interpretar essas músicas para eles”, assinala.
Rumo aos 70
No correr sinuoso dessa rodovia libertária de sua própria carreira e história, as próximas paradas de Marina Lima não poderiam ser definidas sem, antes, um olhar pelo retrovisor.
“Eu ei por algumas transformações musicais, tenho 45 anos de carreira. Talvez, por isso, você faz essa pergunta (sobre a obra dela aglutinar, transitar e brincar com os lugares aparentemente paradoxais de diva pop e compositora cancionista, tradição e novidade, peculiaridade e universalidade). Sei que tem de tudo isso um pouco na minha obra”, ite, sem se perder em uma atitude de mera contemplação do próprio ado.
“Já vivi minha adolescência, meus 20, 30, 40, 50… E não fiquei presa nessas idades. A verdade é que sou muito curiosa com as coisas que a vida me mostra ou propõe. Só comecei a dominar mesmo a minha vida depois dos 60 anos mesmo. E agora eu ainda quero mais!”, entusiasma-se.
“Vou fazer 70 anos em setembro. E, enquanto a maioria se prende ao ‘problema de envelhecer’, a questão principal, para mim, é manter a minha vida o mais saudável possível para poder desfrutar dessa experiência que é amadurecer, que é envelhecer”, reforça ela, para quem o tempo traz trunfos, como uma maior sensação de segura de si e até uma percepção de ser merecedora de suas escolhas, tudo com o bônus de sofrer menos com preocupações sobre o julgamento alheio. “Eu quero descobrir o que há de libertador agora, nesse processo e idade em que me encontro. Quero seguir cuidando da minha saúde, exercer minha empatia, trocando com meus amigos e com meu amor”, define.
Novidades
Marina Lima lembra que, quando começou sua carreira, não havia muitas mulheres em postos de comando. “Era um mercado ditado por homens. Hoje, mudou. Está caminhando para um lugar mais justo, mas ainda não está tudo dominado. Sinto orgulho das mulheres, da população LGBTQIAPN+ e dos pretos. Toda a nossa maioria – porque somos maioria mesmo – está levando adiante lindamente essa luta”, descreve, antes de anunciar que deve fazer uma pausa após a conclusão da turnê “Rota 69”.
“Estou só esperando a hora de fazer uma nova imersão nos estudos de violão, no domínio da linguagem midi (para gravação) e na alimentação vegana. Estou em um momento de buscar sentidos para as coisas novamente, é uma coisa mais do que apenas musical. Sabe aquela imagem de quando se solta um cachorro em um campo verde, bem grande? Estou me sentindo como aquele cachorro”, brinca.
“Daqui a um tempo, quando essa turnê acabar, vou dar uma sumida, porque preciso gravar um disco novo. Estou cheia de inspirações. Eu não sou aquela pessoa que compõe nos intervalos. Tenho ideias, mas para organizá-las preciso parar. O que me mantém é a música, principalmente a interna”, explica, e conclui: “Adoro ficar em silêncio, tocando. Em setembro paro tudo para gravar um disco novo”.