É para desviar as pessoas de uma armadilha contemporânea que o espetáculo “Piratas do Curral”, que marca os 20 anos de trajetória da Cia. Circunstância, estreia nesta sexta (13) em Belo Horizonte, apostando em uma inversão de valores. “Estamos sendo usados pela tecnologia, quando o ideal seria o contrário”, teoriza Diogo Dias, que, ao lado de Dagmar Bedê encarna uma dupla de “piratas palhaços” sem embarcação ou mar para navegar, em busca de uma República utópica onde vigora a liberdade de ser e estar.
“O fantástico mundo da imaginação é a nossa matéria-prima”, conceitua Diogo, que não esconde a sua devoção à sabedoria das crianças. “O terreno fértil da infância é a época em que a gente está com a criatividade mais latente, e, como artistas, queremos cultivar isso em todas as pessoas, inclusive nos que já são adultos”, afiança.
Para compor suas personagens, a diretora Marina Viana, que também assina a dramaturgia, sugeriu exercícios com perguntas objetivas aos intérpretes acerca do nome, da origem, sobre façanhas e as piores desventuras, e mesmo se cada palhaço havia perdido algum membro durante sua vida nos mares.
Pensando nas “pequenas rupturas e transgressões”, a montagem apresenta ao público “a linguagem de um cabaré voltado para as infâncias”, que não abandona a palhaçaria, conta Dagmar. “É uma brincadeira que pega, quebra, reconstrói e destrói os conceitos, as ideias, as estéticas e tudo mais. Aquela brincadeira com um fundinho de verdade”, filosofa a atriz.
García Márquez, Disney e ícone LGBTQIA+
Publicado no início da década de 1990, o livro disruptivo “Zona Autônoma Temporária”, do norte-americano Hakim Bey, pesquisador da organização social dos piratas, e a companhia Selvática, dedicada a espetáculos de cabaré, serviram de inspiração.
Na pele de Úrsula Del Fuego, que transita da protagonista de “Cem Anos de Solidão”, clássico de García Márquez, à vilã da clássica versão para “A Pequena Sereia” da Disney, Dagmar compõe uma matriarca latino-americana “forte, cheia de complexidade, com acertos e erros”, a partir de figuras “dissidentes e revolucionárias” como a lendária drag queen Divine, interpretada por Harris Glenn Milstead, que morreu aos 42 anos, em 1988, e se tornou “motivo de culto para a comunidade LGBTQIA+” ao redor do mundo.
“O levante é mais importante do que a própria revolução que, quando acontece, acaba cooptada pelo sistema. O levante é feito de pequenos momentos de liberdade plena, de movimento real desses corpos, dessas ideias e pensamentos, com pequenas mudanças que vão acarretar grandes reverberações no futuro, a partir de sua profundidade”, reflete Dagmar, para quem “esses piratas vieram para pilhar a atenção do público”.
Seu parceiro de cena concorda. “Queremos recuperar esse estado de presença, de olho no olho, de encontro. É deixar as telas de lado um pouquinho para brindar, se divertir, aproveitando o ambiente, o espaço público, convidando as pessoas a largarem o feed infinito para assistirem a paisagem infinita da vida”, conclama Diogo.
Conhecendo-se através do riso
Diogo Dias acredita que a palhaçaria “nos ensina muito sobre nós mesmos”. “Isso de ser palhaço ainda vai nos levar além”, brinca, parodiando um poema célebre de Paulo Leminski (1944-1989). Dagmar Bedê aponta que o ofício de palhaça está ligado a “rir da própria derrota”.
“Assim, eles estancam o curso da violência, seja ela interna ou externa. É um processo de vida, de você conseguir olhar para as suas sombras, os medos e as imperfeições. É conseguir abraçar e aceitar aquela parte que te incomoda, e, quem sabe, até sorrir com ela”, elabora. A comunhão do riso é, para Diogo, um dos aspectos cruciais da palhaçaria.
“Nosso desafio é fazer rir através de uma perspectiva de superação, e não de opressão. É importante que a pessoa ria conosco, não que se torne um alvo”, salienta o artista, também motivado a “fazer graça e tirar riso de assuntos sérios, delicados, difíceis”. “O humor nos ajuda a superar determinadas barreiras”, reforça. Nesse longo percurso com a Cia. Circunstância, ele garante que “o ímpeto e o desejo de brincar, se descobrir, inovar e aprofundar as camadas” permanece intacto.
Dagmar complementa que “o acúmulo de experiências” contribuiu para a maturidade atingida. “Além do entendimento da arte de rua como local de ocupação e resistência, começamos a explorar outras possibilidades, buscando a diversidade de corpos, olhares e pensamentos para que a gente consiga se reinventar a cada momento”, arremata.
Serviço
O quê. Espetáculo “Piratas do Curral”, da Cia. Circunstância
Quando. Estreia nesta sexta (13), às 13h30, no Centro Cultural Venda Nova; segue em cartaz até o dia 22 de junho, com encerramento no Parque Municipal, às 15h
Onde. Apresentações no Centro Cultural Venda Nova; Praça do México; Centro Cultural Santa Rita; e Parque Municipal
Quanto. Gratuito