“Já são duas horas? Pelo amor de Deus”, espanta-se Othon Bastos ao receber a ligação da reportagem. É a oportunidade para o ator fazer a primeira das muitas citações que surgem ao longo da entrevista: “O tempo se vinga das coisas feitas sem a colaboração dele”, registra, ao pegar emprestado uma frase do jurista uruguaio Eduardo Juan Couture para falar da velocidade do tempo. Para um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira, porém, o ar dos anos tem sido generoso, permitindo que ele possa comemorar 92 anos de vida em cima do palco, em meio a aplausos da plateia.

Foi assim no último dia 23, durante a sessão do espetáculo “Não Me Entrego, Não!” em Salvador, na Bahia, Estado natal do eterno Corisco do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha. “Na hora que eu disse que fazia um monólogo aos 91 anos, a minha memória (participação de Juliana Medella, que ajuda o ator a relembrar fatos e datas) corrige: ‘91 não, 92’. Nesse momento, o povo começou a cantar ‘Parabéns para Você’. Foi emocionante”, lembra Bastos, que traz a peça para BH neste fim de semana, com sessões amanhã, sábado e domingo, no teatro do Minas Tênis. Os ingressos já estão esgotados.

O título “Não Me Entrego, Não!” já é muito simbólico do que Bastos almeja com o monólogo. “Tudo o que eu quis mostrar, sem ser uma biografia, está no palco. São os momentos que eu ei, os momentos que eu vivi, os momentos que consegui ultraar e trazer na minha bagagem. Mas não estou me exibindo. Estou doando o que consigo dar às pessoas, com carinho, amor e alegria, para mostrar que viver é mais importante do que a posteridade. Pegue a mão da vida e vá, não importa para onde. É isso que procuro mostrar no palco”, assinala.

O espetáculo chega à capital mineira exatamente um ano após a estreia, no Rio de Janeiro, uma temporada que se alongou a despeito da previsão inicial de Bastos e do diretor e autor, Flávio Marinho. “Fizemos com a intenção de ficar dois meses em cartaz, mas ela foi se transformando, e o público não permitiu que ela acabasse. Ficamos mais dois meses, depois mais dois meses... Depois que completamos nove meses no Rio, fomos para São Paulo, fazendo outros lugares nos intervalos. Para espanto nosso, tomou uma dimensão muito grande”, comemora.

Othon Bastos frisa que, no momento que se abre para o público sobre a sua vida, ele está falando de história – “a do teatro, a do Brasil, a da política, a da economia... Tudo que é possível dizer, você vai dizendo”. Na sua avaliação, as pessoas não querem escutar sobre o que aconteceu, mas é algo que “tem que ser lembrado, para que não aconteça de novo”. Em meio à ditadura militar, recorda, ele ousou montar, com a Sociedade Teatro dos Novos, em Salvador, “Eles Não Usam Black-Tie”, de Giansco Guarnieri. “Imagine a loucura. Estávamos estreando um teatro (o Vila Velha) com essa peça tão contestadora”.

Foi durante os ensaios desse espetáculo que ele conheceu Glauber Rocha, com quem faria um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, lançado em 1964, no Festival de Cannes. “Depois de ver vários espetáculos nossos, ele foi me chamar para fazer o cangaceiro. Não era eu que iria fazer. Mas o Adriano Lisboa teve que sair, e o Glauber dirigiu por 14 horas para me convidar. Fui para Monte Santo e fiquei 20 dias filmando”, lembra. Foi Corisco quem transformou a carreira de Othon, que faria tantos outros filmes emblemáticos nas décadas seguintes.

“Cada vez que faço uma cena, eu rio de mim mesmo”

Uma das recomendações feitas por Othon Bastos para o autor Flávio Marinho foi estabelecer, na peça, uma óptica mais alegre para os acontecimentos que viveu. “Estamos falando de ser humano, de vida. De amor, de alegria. A vida tem que ser com alegria. Só envelhece aquele que já desistiu de viver”, sublinha.

Protagonista de várias agens importantes no teatro, no cinema e na TV, ele orientou o amigo a deixar de lado as “(histórias) amargas, com nada de tristeza”. O importante, para ele, é caminhar para frente. “Como diz o (poeta) Mário Quintana, ‘eu não tenho paredes; somente horizontes’”, cita.

Alguns dissabores até surgem, mas ganham outra conotação. “Não levo a fundo, para não ficar com rancor. Ao contrário, o por cima. Cada vez que faço uma cena na peça, eu rio de mim mesmo. As coisas podem ter sido absurdas no momento em que aconteceram, mas depois vão ganhando humor”.

Um desses instantes que aram a ganhar irreverência foi quando, nos anos 1950, resolveu estudar teatro em Londres. “Fui todo prosa para a escola, mas, durante quase seis meses, era soldado observador ou figuração muda. Foi o Sérgio Viotti que disse: ‘Aqui a gente não vai conseguir nada. Qualquer teste que for fazer, se tiver um inglês, o papel será dele’”.

Apesar da longa carreira, iniciada no teatro, em Salvador, “Não Me Entrego, Não!” é o primeiro monólogo de Bastos. “Eu digo mesmo: cansa como o diabo. Ainda mais com a duração de uma hora e meia. Mas estou lá, fazendo com todo amor, porque é a única coisa que posso ar para as pessoas”.

Embora o título faça referência à música de Sérgio Ricardo para “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Bastos não põe o longa de Glauber como o seu preferido. O escolhido é “São Bernardo” (1971), de Leon Hirszman, em que interpreta Paulo Honório, homem pobre que consegue tomar uma fazenda e enriquecer. 

“Foi um dos grandes papéis que fiz. Primeiro, pela genialidade de Graciliano Ramos para escrever o romance (que inspirou o filme). Depois, pelo fato de Leon ter me escolhido, já que o personagem tinha lábios grossos e cabelo sarará. Falei isso com ele, que me disse: ‘Quando as pessoas lerem o romance, elas vão lembrar da sua figura’’”, recorda.