Música

Cabo Verde inspira trabalhos dos grupos Kriol e Coladera e de Marco Scarassatti

País africano também foi paisagem para a gravação do videoclipe do rapper Rincon Sapiência

Por Raphael Vidigal
Publicado em 05 de fevereiro de 2020 | 03:00

Pelas ondas curtas das rádios brasileiras, os habitantes de um arquipélago composto por dez ilhas vulcânicas se sintonizam com a voz grave e firme de um homem que, com o auxílio de seu violão, canta sobre o mar da Bahia, Estado por onde os portugueses entraram no Brasil em 1500. A história que se conta é que, nas décadas de 40 e 50, era desse jeito que as canções de Dorival Caymmi chegavam a Cabo Verde, país africano que também foi colônia de Portugal.

“Foi uma influência fundamental que permite que, a uma primeira escuta da música cabo-verdiana, o brasileiro se sinta em casa. Como na nossa música, o violão de nylon é muito presente, eles adaptaram o cavaquinho, que chegou até lá através do Brasil. Ao mesmo tempo, existe uma proximidade rítmica e percussiva com a matriz africana”, afirma Paulim Sartori, 29.

Essa conexão pode ser sentida em três iniciativas na cidade que têm em comum a música de Cabo Verde. São elas os duos Kriol e Coladera e o trabalho do músico Marco Scarassatti. Sartori, do Kriol, dá como exemplo de um instrumento típico do país o ferrinho, que a pessoa toca raspando um pedaço de ferro, e também formações apoiadas na sanfona, lá conhecida como “gaita”, que, segundo Sartori, lembram os trios nordestinos. O músico belo-horizontino começou a estreitar os laços com a música de Cabo Verde em 2014, quando teve “o primeiro contato consciente” com o trabalho da cantora Mayra Andrade.

“Aquilo me fascinou por apresentar uma beleza, até então, inaudita para mim. Era uma síntese muito sedutora da tradição cultural do país com elementos contemporâneos”, recorda Sartori. Foi o ponto de partida para que, no mesmo ano, ao conhecer a cantora Jhê, eles formassem o Kriol.  “Quando tocamos pela primeira vez uma música da Mayra Andrade, soou tão diferente que começamos a desenvolver, meio ingenuamente, um projeto de pesquisa musical”, conta Sartori.

Ele, no entanto, faz questão de salientar que a intenção “nunca foi tocar da maneira tradicional”. “Tocamos como brasileiros que reverenciam essa música”, explica o instrumentista, que cita ritmos tradicionais como a morna – cuja principal representante foi Cesária Évora – o batuque e o funaná.  Com um conjunto de canções autorais, o duo planeja lançar o primeiro álbum ainda neste primeiro semestre.

As composições foram escritas no idioma crioulo cabo-verdiano, que, a despeito do português ser a língua oficial, prevalece na comunicação local. “Eles compõem em crioulo, o que revela que não há uma identificação total com o português”, diz Sartori. O nome Kriol foi escolhido para batizar o duo justamente por ser a forma como se escreve o idioma mais utilizado no país. Mas Jhê e Sartori não são os únicos que adentraram esse universo. 

Há dez anos, o músico português João Pires, 38, se encontrou com o violonista mineiro Vitor Santana na Espanha. A partir daí, eles criaram o Coladera que, em 2019, viu músicas de seu disco “Lá Dôtu Lado” receberem arranjos orquestrais. Inspirado em um gênero cabo-verdiano, o nome do grupo “simboliza o meio que nos une, assim como na geografia, em que, entre Brasil e Portugal, existe Cabo Verde”, explica Pires. Como referências, ele enumera Paulino Vieira, Bau, Ildo Lobo, Manuel Novas e Orlando Pantera.

Travessia

Três mulheres trituram milho em um grande pilão. A cena cotidiana era, aos olhos de Marco Scarassatti, 48, “um espetáculo de sincronia e ritmo”. Ele estava em Cabo Verde, na ilha de Santo Antão, com “o objetivo de pesquisar a sonoridade da ilha, a musicalidade das variantes do cabo-verdiano, o quanto isso se desdobrava e a mistura entre matrizes africanas e europeias”, conta.

Tudo isso foi em 2015, quando o professor de educação musical da UFMG viajou para o país africano por conta de um projeto de cooperação acadêmica financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Associação das Universidades de Língua Portuguesa (Aulp). O resultado foi o álbum “Crônicas Sonoras de Cabo Verde”, que chegou à praça no ano ado. 

“Eu conhecia um pouco sobre as músicas de Cabo Verde, as mornas cantadas pela Cesária Évora, assim como o violino típico da ilha do Fogo, presente no filme ‘Casa de Lava’, do Pedro Costa”, informa. Ao chegar a São Vicente, em pleno Carnaval, Scarassatti sentiu que “a música estava no ar e no mar que nos circunda”, diz. 
Nesse caminho, ele se deparou com “a prosa tranquila dos trabalhadores contrastando com os sons de faca”. Quem também esteve em Cabo Verde foi o rapper Rincon Sapiência, que gravou o videoclipe de “Onda, Sabor e Cor” por lá. (com Patrícia Cassese)