Lançamento

Frutos e folhas do ‘Canto de Árvore’ de Lucina

Novo trabalho da cantora apresenta síntese poética de carreira ligada à natureza

Por Raphael Vidigal
Publicado em 28 de agosto de 2017 | 03:00

Todo dia 25 de dezembro, a cantora Lucina, 67, ganhava de sua companheira Luhli, 72, uma música de presente. Não pelo Natal, mas porque Lucina nasceu, justamente, no dia da celebração cristã. “Eu poderia gravar um CD só com músicas que ganhei da Luhli nesses aniversários”, brinca a cantora. Uma delas destaca-se no coeso álbum “Canto de Árvore”, lançado pela compositora neste mês de agosto. De cara, os versos de “O Que Ficou” deixam claro do que se trata para quem conhece a história da dupla.

“É um retrato bem fiel de tudo o que a gente viveu. Quis muito colocar essa referência no disco também para casar com o ‘Yorimatã’, que saiu no ano ado”, justifica Lucina, em referência ao documentário dirigido por Rafael Saar que capta o período de vida em que ela e Luhli viveram um casamento a três com o fotógrafo Luiz Fernando Borges. Os versos da música embebedam essa síntese na poesia.

“Foi muita droga/ muita yoga/ muita vertigem (...)/ ficou você e eu/ cada uma na sua/ no pescoço uma guia/ o eterno elã do céu/ seja como for/ muito mais que amor”, vaticina a letra sublinhada por uma sonoridade bluesy construída somente com teclado, baixo e a perenidade da voz de Lucina, com um canto a cada dia mais limpo.

“Luhli fala que escondida atrás da minha voz macia emerge sempre um recado forte”, conta a entrevistada. Quem escutar o novo álbum de Lucina não terá argumentos para tirar a razão da amiga. Se as 11 composições inéditas e autorais eiam por caminhos variados, é porque a diversidade rítmica sempre pautou a trajetória da artista. Mas fica impossível se desvencilhar de dois valores inerentes a essa obra e impregnados na alma de Lucina: a rebeldia e a natureza.

Contraria. Logo na abertura dos trabalhos, a perspicaz “Vice-Versa”, parceria com Zé Renato Fressato, adianta a dispensa do óbvio nesse caminhar. “De olhos fechados, desperto/ deitado em meu leito, caminho/ de língua travada, eu grito/ estando errado, estou certo”, elaboram os versos. Na mesma toada se insere “Do Contra”, feita com Iso Fischer, que determina: “Tartaruga não sabe correr/ a serpente se arrasta no chão/ borboleta só pode voar/ e eu só canto se for contramão”. “Quando se tem atitudes diferentes como eu fiz a vida toda, as pessoas ficam interessadas, isso está muito em voga ultimamente e tem que estar mesmo”, celebra a intérprete.

O mote serve para Lucina traçar uma reflexão temporal. Com a palavra “ao contrário” sempre na boca, ela preferiu inverter as expectativas, e só após colocar o disco físico nas prateleiras irá disponibilizar as músicas nas plataformas digitais. “O excesso de informação cria uma velocidade muito alta, que não é real, o retorno você sente na hora, mas ele a tão rápido que um vazio te toma conta, como se nada tivesse acontecido, então o ânimo sente uma baqueada nessa fresta”, filosofa.

Pois este trabalho composto com esmero artesanal por Lucina e seus parceiros de música e lida é uma pausa para absorver o que não se dispensa na primeira esquina, como ensina a lúdica e lírica “A Dádiva Divida”, folha e fruto dessa árvore da vida.