Todas as noites, o pequeno segundo andar da boate Vogue se enchia de uma atmosfera sonora que condensava dores e amores do samba-canção, estilo predominante naquele período. Entre 1948 e 1952, havia uma estrela que era a dona absoluta do palco da boate carioca. Sem a mínima questão de agradar ao público como em cada gesto da contemporânea Carmen Miranda (1909-1955), a futura jurada de calouros Aracy de Almeida (1914-1988) não poupava maus-tratos e barbaridades contra os fãs (como cuspir e assoar o nariz), que ainda assim a aplaudiam.
O repertório que Aracy cantava nessas apresentações tinha um único astro e gerou dois álbuns em formato de 78 rotações, com as clássicas “Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila”, “Palpite Infeliz”, “Último Desejo” e “Com Que Roupa?”, entre outras de autoria e em homenagem ao amigo Noel Rosa (1910-1937), falecido 13 anos antes e, desde então, esquecido. “Foi a primeira vez que se fez um tributo com critério no Brasil”, afirma o jornalista e crítico musical Hugo Sukman, 48. “Esse trabalho estabeleceu a obra do Noel e o transformou no maior compositor brasileiro”, completa.
O pioneirismo de Aracy parece ter ganhado em 2019 uma legião considerável de discípulos, tanto numérica quanto qualitativamente. Nando Reis, 56, escolheu a última sexta (19), data do aniversário de 78 anos do homenageado, para lançar o seu “Não Sou Nenhum Roberto (Mas Às Vezes Chego Perto)”, em louvor ao Rei que criou “Amada Amante” (com Erasmo Carlos). “Nana Caymmi Canta Tito Madi”, colocado na praça em março, dispensa explicações. O mesmo se observa em “Mart’nália Canta Vinicius de Moraes”. “Canto da Noite na Boca do Vento”, de Fabiana Cozza, reacende o legado de Dona Ivone Lara (1922-2018).
E, embora não seja um tributo, “Giro”, de Roberta Sá, debruça-se sobre 11 canções inéditas de Gilberto Gil. Isso sem falar em iniciativas como as de Claudette Soares, que prepara disco para celebrar os 80 anos de vida do compositor mineiro Silvio César, da revisão que o saxofonista Esdras Nogueira fez em cima do cultuado “Transa” (1972), de Caetano Veloso, com o seu “Transe”, e do recente “Ilustre Guerreiro”, reverência do Biquini Cavadão aos hits da carreira de Herbert Vianna.
“De quando em vez surgem fórmulas para revigorar carreiras. Os acústicos duraram bastante tempo, até por artistas que não gravavam elétrico. Agora são os tributos”, critica o jornalista Jamari França, 69, autor da biografia dos Paralamas do Sucesso. Produtor musical e dono da gravadora Joia Moderna, o DJ Zé Pedro, 49, também não alivia. “A internet foi a causadora de um fenômeno que eu abomino, que é o saudosismo, a eterna glorificação de uma MPB do ado, uma reverência aos medalhões da música brasileira”, dispara.
Panorama. Apesar disso, o DJ compreende o “olhar de retrovisor” que alguns intérpretes têm adotado. “Não há como haver a sofisticação de outrora com um ensino cada vez mais miserável. Os letristas de hoje são um retrato da educação que tiveram”, pondera. Pesquisador da música popular brasileira e autor de “História Sexual da MPB” (2006), Rodrigo Faour, 46, coloca na conta do mercado essa nova onda. “É um momento estranho para as pessoas sobreviverem de música. Existe um público que gosta de ouvir coisas conhecidas, talvez o tributo dê uma garantia de retorno. Há trabalhos genuínos e outros que são apenas mercadológicos”, opina.
Sukman vai nessa mesma linha. “Diante do oceano que são as plataformas digitais, uma música que não é muito popular se torna uma mensagem numa garrafa, e quando você se associa a uma obra mais estabelecida, isso cria um cantinho para você nesse mar”, afiança. “Ainda que diferentes entre si, os projetos da Roberta Sá, do Nando Reis e da Nana Caymmi apresentam uma coerência e fidelidade às carreiras”, garante.
Idolatrias. A polêmica que envolveu a participação de Fabiana Cozza, 43, no musical sobre Dona Ivone Lara, onde viveria a protagonista, mas abriu mão por conta de contestações sobre se teria o tom de pele adequado para o papel, ganhou seu capítulo final. Os elogios da crítica em torno do disco “Canto da Noite na Boca do Vento” contrastaram com a má avaliação da peça. “O inaceitável é a violência, o ódio e a discriminação. Dona Ivone é imensa. Criadora, sambista, mulher negra e enfermeira que enfrentou toda sorte de preconceitos”, exalta.
A homenagem de Nando Reis a Roberto Carlos ou por caminhos menos tortuosos e arriscados. “Escolhi 12 pérolas. Ele é o Rei, eu sou Reis, estou pluralizando o Roberto”, diverte-se. E vem mais por aí. Alcione pretende gravar Benito di Paula. Hamilton de Holanda, 43, pensa em Djavan. “Já imaginou que legal?”, questiona Hamilton.
Ouça homenagem de Fabiana Cozza a Dona Ivone Lara: