Duas doses de saquê para “tomar coragem”. Poderia ser uma tequila, mas, como estava num restaurante japonês, a escolha foi pela bebida mais forte do local, o que não faz de Roberta Sá, 38, uma bêbada, pois, nesse caso, além de tudo, o motivo era nobre. Foi nesse dia que, ao chegar em casa, ela mandou uma mensagem de texto para Bem Gil com a primeira parte de “Cantando as Horas”, terceira faixa do disco que a cantora potiguar acaba de lançar. “Giro”, cujo show chega ao Palácio das Artes no próximo dia 17 de maio, apresenta 11 inéditas de Gilberto Gil, que toca o seu inconfundível violão em todas elas.
“Nunca antes na história deste país” uma intérprete se atreveu a tanto. Entregues pelo filho Bem ao pai – que não é familiarizado com os diálogos virtuais –, os versos tomam a forma de xote numa das quatro parcerias entre a pupila e o mestre, ritmo que também prevalece em “Fogo de Palha” e “Xote da Modernidade”. A exceção é o ijexá “Outra Coisa”, ainda assim com os pés fincados na Bahia de Gil. “Nosso encontro é totalmente sobre o Nordeste. O fio condutor é a saudade, acho que é o que nos faz criar. Saudade da mesa posta, do cheiro, do tempero, de um certo jeito de ser cerimonioso com intimidade”, descreve Roberta.
Foi em reuniões dominicais na casa do jornalista Jorge Bastos Moreno (1954-2017) que, sem cerimônia, um dia a ideia do disco apareceu, tão natural como se dão as amizades. “Gil veio para o meu mundo dos mortais, a gente tomava drink e dava risada juntos”, conta a cantora. Envolvidos por esse afeto, os dois retomaram com intensidade um contato que acontecera de maneira fortuita e rápida quando, em 2011, gravaram “Minha Princesa Cordel”, para a novela da TV Globo “Cordel Encantado”, e em breves esbarrões nos camarins e nos aeroportos da vida de artista.
O novo momento nasceu com fluência e mansidão. “Aprendi a colocar o afeto na frente de tudo e a levar a vida com um olhar mais generoso com os outros e comigo. Estou vivenciando um estado de consciência que não quero deixar nunca mais”, diz a cantora, que deu o primeiro o profissional da carreira ao fazer um teste para a edição de estreia do programa “Fama”, em 2002. “Gil é um desbravador da alma humana, que coloca um traço muito forte de espiritualidade em tudo que faz”, elogia.
Na ocasião, a música escolhida era “Amor Até o Fim”, de Gil, imortalizada por Elis Regina em 1974. Por sinal, Roberta não tem dúvidas de que o amor em suas infinitas formas possíveis é o grande tema de seu novo disco – o que se comprova na charmosa “O Lenço e o Lençol”, ode à liberdade e ao Carnaval que diz “Não me bote no bolso, e sim no colo”; com “Fogo de Palha”, sobre a paixão; “Autorretratinho”, que contempla o amor próprio; “A Vida de um Casal”, focada no que perdura nas relações matrimoniais; e na observação do amor platônico em “Outra Coisa”.
“O amor se comunica com as pessoas, e essa é uma escolha. Você pode se comunicar de maneira mais agressiva, contundente, mas, no caso do mundo de agora, dos anos que se aram e dos que virão, eu sinto essa necessidade de levantar a bandeira do acolhimento, de qualquer gesto que traga um afago para as pessoas”, sustenta Roberta. “Estamos esquecendo o lugar do afeto. Cantar o amor nos dias de hoje é quase um ato revolucionário”, completa.
Derradeira canção do álbum, “Afogamento” teve como inspiração uma viagem da intérprete. Lançada como bônus em “OK Ok Ok” (2018), num dueto de Gil e Roberta, dessa vez ela surge apenas no canto delgado da potiguar. Parceria de Gil e Jorge Bastos Moreno, foi fruto das brincadeiras do baiano com Roberta quando ela ou uns dias em Fernando de Noronha (RJ). “Ele dizia que os golfinhos tinham me abduzido”.
Título. Há muitas teorias por trás do batismo de “Giro”, e a entrevistada não desmente nenhuma delas. “Tem uma coisa desse movimento de giro que está presente nas rodas de coco, samba, maracatu e nas canções folclóricas do nosso país”, informa Roberta. A tese da junção das iniciais de Gil e Roberta tampouco é descartada. A faixa que abre os trabalhos não deixa de tocar no sincretismo religioso tão presente no Estado natal de Gil, com saudação à orixá Nanã, o que dá a deixa para Roberta comentar o cenário de intolerância às crenças e às liberdades.
“As pessoas precisam se perguntar o que está errado na vida delas para se incomodarem tanto com as escolhas dos outros, a ponto de querer eliminar quem pensa diferente. Isso me preocupa, é a receita para a infelicidade”, afirma ela, que não se entrega e retoma o mantra. “Precisamos desintoxicar os corações e ter amor pelo futuro, que nada mais é do que a esperança. O amor ainda existe, não é mentira”, conclui.
Destaque. “Giro”