A autônoma Wanessa Camargos, 38, vive no bairro Aarão Reis, na região Norte de Belo Horizonte, há 30 anos, em uma área com esgoto a céu aberto. As três décadas no local fizeram com que ela, de uma forma ou outra, se acostumasse com a situação. O mau cheiro, embora descrito por ela como “terrível”, já não a afeta tanto. O que a impacta mesmo é a frequência com que ela e as filhas tiveram que ir ao médico ao longo da vida por viverem em uma área sem estrutura. “Todo mundo vive doente, mas as crianças são quem mais tem a famosa virose. É muita sujeira, muito mosquito, muito lixo, a situação é precária”, explica. O que ela sente na prática tem respaldo dos dados. No Brasil, 6,6 milhões de crianças com até 6 anos se afastam de suas atividades pela falta de saneamento básico a cada ano. O número equivale à população do Paraguai, segundo dados do Instituto Trata Brasil.
O estudo “Futuro em risco: os impactos da falta de saneamento para grávidas, crianças e adolescentes”, feito pelo instituto com base nos dados do Ministério da Saúde, mostra que mais de 300 mil crianças são internadas em um ano por doenças relacionadas à falta de saneamento no país. São incluídas na lista enfermidades de veiculação hídrica, como dengue, cólera e diarreia, ou seja, aquelas causadas por água parada ou contaminada, além de doenças respiratórias, como gripe e Covid. Entram ainda na contagem as enfermidades de saúde bucal, uma vez que, sem água tratada, a higiene é prejudicada, o que leva ao aumento da incidência desses casos.
Em Minas, mais de 4 milhões de mineiros não têm o à coleta de esgoto. A água tratada não chega para 3,14 milhões de moradores do Estado. Relacionando a taxa de incidência de doenças de veiculação hídrica em crianças de até 6 anos, entre 2010 e 2022, com o o à coleta de esgoto no mesmo período, é possível comprovar que o aumento do serviço gera redução de internações por essas enfermidades. Em 2010, quando nem metade (45,4%) da população brasileira tinha rede de esgoto, 29 crianças, a cada mil, eram internadas em função dessas doenças. Em 2022, a população coberta pelo serviço subiu para 55% dos brasileiros, e a taxa de crianças retidas nos hospitais caiu para 16 a cada grupo de mil.
“Uma diarreia grave pode matar uma criança. Antes da década de 1950, aliás, essa era uma das principais causas de morte nessa faixa etária. Porém, houve uma redução desses óbitos atrelada ao saneamento básico em mais locais”, explica a infectologista Priscila Reis, do Hospital da Baleia. Felizmente, as filhas de Wanessa não fazem parte da triste estatística de quem perde a vida para essas enfermidades. Atualmente, as adolescentes têm 12 e 17 anos. Resignada, a mulher conclui que a família se acostumou com o mau cheiro ao ponto de não senti-lo mais: “O organismo delas também ficou mais forte”, disse.
Quem precisa de um leito hospitalar e mora em cidades com menos infraestrutura também encontra uma triste realidade relacionada à saúde. De acordo com dados divulgados pelo governo de Minas Gerais, Belo Horizonte concentra mais leitos hospitalares vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) que o somatório de todas as cidades localizadas na região metropolitana. São 7.681 no total, sendo que 5.217 estão na capital mineira.
“Esse dado chama atenção, tendo em vista que o somatório da população dos demais municípios é substancialmente superior à população da capital”, destaca o estudo do governo de Minas.
Os dados também mostram que Contagem e Betim estão como o segundo e o terceiro lugares no número de leitos, muito em função da concentração demográfica e do papel de relevância que exercem na Região Metropolitana de BH (RMBH).
Sem condições. Em BH, há 44.889 (4,7%) domicílios sem armazenamento de água e 2.036 (0,2%) sem banheiro exclusivo.
Desesperança. Célio Pereira, 52, se mudou para o bairro Aarão Reis aos 34 anos. Desde então, convive com a falta de saneamento. “É muito ruim, com esgoto, entulho, ‘monte de trem’”, relata.
Desabafo. José Aparecido, 67, vive na Vila da Luz, nas imediações do Anel Rodoviário, e sofre com os mesmos problemas. “Estou fazendo um check-up lá no posto e deu problema”, diz.
Pressão em rede. A alta incidência de doenças em pessoas que vivem sem saneamento básico afeta toda a população, pois aumenta a demanda dos sistemas de saúde, conforme a infectologista Priscila Reis, do Hospital da Baleia.
Dependência. A profissional explica que todo o sistema é entrelaçado e que nada é isolado. “Podem faltar leitos”, alerta.
*Essa matéria compõe o caderno especial Habitar, com reportagem de Gabriel Rezende, Gabriel Rodrigues, José Vítor Camilo, Juliana Siqueira, Raissa Oliveira, Raquel Penaforte e Tatiana Lagôa; edição de Karlon Aredes e fotos de Alex de Jesus, Fred Magno, Thomás Santos e Flávio Tavares.