Os ‘nãos’ que impedem novas chances e ajudam a manter o tabu da doação de órgãos
Taxa de negativa familiar de potenciais doadores chegou a 43% no Brasil em 2023; motivos para as não autorizações am pela desinformação

A recusa familiar é uma das principais razões para que um órgão não seja doado no Brasil. Entre janeiro e setembro de 2023, a taxa média de negativas alcançou 43%, de acordo com o Registro Brasileiro de Transplantes, relatório divulgado na última semana pela Associação Brasileira de Transplante de Órgão (ABTO). Conforme o levantamento, das 5.998 entrevistas realizadas com as famílias, 2.573 não autorizaram que os órgãos de seus parentes fossem transplantados após morte encefálica comprovada.
Minas Gerais quase acompanha o indicador nacional. O Estado tem 40% de negativas, o que segundo o diretor do MG Transplantes, Omar Lopes Cançado, é mais que o dobro da média considerada razoável, que ele acredita ser em torno de 15% a 20%. “Para conseguirmos melhorar esses números, vamos depender muito da solidariedade das pessoas. Elas têm que entender que um único doador pode salvar 10 ou mais vidas, e que a chance de alguém precisar de um transplante é 10 vezes maior do que a de ser um doador.”
Diversos motivos são apontados para que as famílias tomem a decisão de recusar. Um dos mais relevantes é a desinformação quanto a doação de órgãos. “Existe muito desconhecimento, inclusive muita gente acha que o corpo do parente será mutilado e que, por isso, não poderá haver um velório digno. Mas a cirurgia para a retirada dos órgãos é como outra qualquer, não deixando marcas visíveis. E também há quem acredite que o diagnóstico de morte encefálica não é seguro, e aí acaba pensando que o familiar não está de fato morto. Além disso, ainda há questões de cunho religioso,” explica o diretor.
O presidente da Associação Brasileira de Transplantados (ABTx), Edson Arakaki, também destaca que quando o assunto é mudar a realidade das estatísticas de não aceitação, a chave é trabalhar a informação para que ela chegue sem ruídos aos receptores. “O sim da família é justamente o ponto de partida de tudo. Então toda mudança que pode acontecer na vida de alguém que está na fila depende dessa autorização. Por isso, a gente precisa debater e informar as pessoas de forma que elas entendam e possam tomar uma decisão mais consciente.”
Potenciais x doadores efetivos
No Registro Brasileiro de Transplantes, divulgado recentemente pela ABTO, chama atenção a diferença entre os indicadores de potenciais e efetivos doadores. Minas Gerais, o segundo estado mais populoso do Brasil - com 20.538.718 habitantes, atrás apenas de São Paulo, que tem 44.420.459, conforme o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - é apenas o quinto estado no ranking tanto de doadores que preenchem os critérios para a doação (659), quanto no de doador efetivo (222) - que é quando se inicia o processo de remoção de órgãos após o consentimento familiar.
“O ideal seria que a gente conseguisse aproveitar todos os potenciais doadores, porque aí não haveria fila ou se houvesse seria muito pequena. Essa espera é arriscada e sofrida porque o paciente que está aguardando o transplante está correndo risco de vida. Então, que a gente evolua bastante, principalmente na questão da conscientização, mostrando que os procedimentos são efetivos, e que o sistema é organizado e justo, atendendo a todos, independentemente de situação econômica ou social. Mas precisamos lembrar que o procedimento só é realizado se tiver o insumo básico, que é o órgão,” enfatiza o coordenador do Programa de Transplantes Cardíacos da Santa Casa BH, Sílvio Amadeu Andrade.
Lei Tatiane
Como forma de ampliar o conhecimento a respeito da doação, em 8 de novembro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei 14.722/2023 - que cria a Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e Transplante de Órgãos e Tecidos. A nova legislação, que entra em vigor em fevereiro de 2024, tem como objetivos promover a discussão, o esclarecimento científico e confrontar a desinformação sobre o tema.
A nova lei prevê que sejam adotadas pela União, estados, Distrito Federal e municípios, a realização de campanhas de divulgação sobre a doação, como atividades educativas nas escolas, desenvolvimento profissional e capacitação de profissionais da saúde e da educação. De acordo com o governo federal, desde o início deste ano, o país desenvolveu ações de fortalecimento do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que resultaram no crescimento de 106% dos serviços ofertados.
A norma ganhou o nome de Lei Tatiane enquanto ainda tramitava no Congresso Nacional, em homenagem à Tatiane Penhalosa que perdeu a vida, aos 32 anos, depois de não conseguir um transplante de coração. A paciente havia sido diagnosticada com miocardiopatia hipertrófica, doença que aumenta a espessura do coração. Por anos, ela conseguiu controlar o problema com medicação, mas teve uma arritmia e precisou colocar marcao.
Tatiane tentou resistir até a chegada da nova chance de vida, mas faleceu em abril de 2019 - ano em que mais de 5 mil famílias se recusaram a doar órgãos de seus parentes. Nesse mesmo período, quase 220 pessoas faleceram esperando por um coração. Diante disso, a lei surge como um incentivo para fortalecer e ressignificar a cultura doadora no Brasil.
Como funciona a doação no Brasil
Segundo o Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem o maior programa público de transplante do mundo, no qual cerca de 87% dos procedimentos são realizados gratuitamente. Em números absolutos, o Brasil é o segundo maior transplantador do mundo, atrás apenas dos EUA. A rede pública de saúde fornece aos pacientes assistência integral, incluindo exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplante.
Existem dois tipos de doadores no país: o vivo e o falecido. O vivo pode ser qualquer pessoa que concorde com a doação, desde que não prejudique a sua própria saúde. Ele pode doar um dos rins, parte do fígado, da medula óssea ou do pulmão. Pela lei, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores. Já o doador falecido, é o paciente com morte encefálica - que sofreu traumatismo craniano ou derrame cerebral. Ele pode doar coração, fígado, rins, pâncreas, pulmões, pele, ossos, córneas e medula óssea.
A doação de órgãos de doadores falecidos só é permitida após o diagnóstico de morte encefálica, conforme estabelece a Lei 9.434. O procedimento é regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina. Dois médicos diferentes examinam o paciente, sempre com a comprovação de um exame complementar, que é interpretado por um terceiro médico. Depois da confirmação do óbito, a família é entrevistada por uma equipe de profissionais de saúde, para informar sobre o processo de doação e transplantes e solicitar o consentimento para a cirurgia.
Confira outras informações sobre o processo de doação e transplantes:
Quem pode se beneficiar do transplante? Pessoas com doenças crônicas ou agudas, cujos tratamentos já esgotaram as possibilidades de recuperação e que cuja única alternativa seja a substituição do órgão ou tecido afetado e para as quais o transplante seja uma indicação formal e uma possibilidade terapêutica vantajosa.
Quem pode ser inscrito em lista de espera? Pacientes avaliados por equipes transplantadoras, que confirmem a necessidade do transplante e que apresentem doenças reconhecidamente transplantáveis. Essas condições de saúde estão elencadas no Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes, definido pela Portaria de Consolidação GM/MS Nº 4. de 28 de setembro de 2017.
Como acompanhar a posição e evolução em lista de espera por um transplante? Para o acompanhamento da posição e evolução em lista de espera, o paciente deve ar o site snt.saude.gov.br e selecionar o cadastro técnico referente ao tipo de transplante inscrito.
É possível escolher quem receberá o órgão? Na doação em vida, sim. Já para a doação após a morte, nem o doador nem a família podem escolher quem vai receber o órgão. O receptor será então o próximo da lista única de espera de cada órgão ou tecido, definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada estado e controlada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT). A posição na lista é determinada por critérios como tempo de espera e urgência do procedimento. Para determinar a compatibilidade entre doador e receptores, são feitos exames laboratoriais.
Quero ser um doador de órgãos. O que posso doar?
- Córneas (retiradas do doador até seis horas depois da parada cardíaca e mantidas fora do corpo por até 14 dias);
- Coração (retirado do doador antes da parada cardíaca e mantido fora do corpo por no máximo seis horas);
- Pulmões (retirados do doador antes da parada cardíaca e mantidos fora do corpo por no máximo seis horas);
- Rins (retirados do doador até 30 minutos após a parada cardíaca e mantidos fora do corpo até 48 horas);
- Fígado (retirado do doador antes da parada cardíaca e mantido fora do corpo por no máximo 24 horas);
- Pâncreas (retirado do doador antes da parada cardíaca e mantido fora do corpo por no máximo 24 horas);
- Ossos (retirados do doador até seis horas depois da parada cardíaca e mantidos fora do corpo por até cinco anos);
- Medula óssea (se compatível, feita por meio de aspiração óssea ou coleta de sangue);
- Pele (retirados do doador até 30 minutos)
- Valvas Cardíacas
O que é preciso para doar órgãos em vida?
- Ser um cidadão juridicamente capaz;
- Estar em condições de doar o órgão ou tecido sem comprometer a saúde e aptidões vitais;
- Apresentar condições adequadas de saúde, avaliadas por um médico que afaste a possibilidade de existir doenças que comprometam a saúde durante e após a doação;
- Querer doar um órgão ou tecido que seja duplo, como o rim, e não impeça o organismo do doador de continuar funcionando;
- Ter um receptor com indicação terapêutica indispensável de transplante;
- Ser parente de até quarto grau ou cônjuge. No caso de não parentes, a doação só poderá ser feita com autorização judicial. (Fontes: Ministério da Saúde/MG Transplantes)