Refugiados

O drama dos venezuelanos que chegam ao Brasil por Roraima

Em busca de uma vida melhor, vizinhos aterrissam em região desestruturada pelo garimpo ilegal e com pouca infraestrutura

Por Lucas Morais e Gabriel Ronan
Publicado em 14 de fevereiro de 2023 | 23:30

Eram pouco mais de 7h quando o carro de aplicativo estacionou na porta de um hotel em Boa Vista. Quem dirigia era uma motorista venezuelana. No trajeto até o abrigo Waraotuma a Tuaranoko, o maior da América Latina para migrantes indígenas, foram cerca de 20 minutos. Entre uma conversa e outra, o rádio tocava músicas de artistas tradicionais do país vizinho, como Mirla Castellanos e Diosa Canelas – na capital, o espanhol se tornou praticamente a segunda língua.

 

Uma rua de terra batida leva até o abrigo, onde vivem quase 1.100 venezuelanos indígenas, a maior parte da etnia Warao. Na entrada, crianças correm para abraçar os pais que acabam de chegar. Outros levam mantimentos e objetos para as unidades de habitação emergencial, montadas pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur) nos espaços mantidos em parceria com o governo federal em Roraima, por meio da operação Acolhida.

 

Sulverio Jesus, 58, veio para o Brasil com toda a família após perder a filha por falta de atendimento médico. “Não conseguíamos medicamento adequado para a enfermidade dela e, infelizmente, não deu tempo de vir antes de ela morrer. Muitos irmãos venezuelanos diziam que aqui teríamos o à saúde”, conta ele, que tem outros oito filhos. 

 

Os Warao vivem na região Nordeste da Venezuela, perto da fronteira com a Guiana, no delta do rio Orinoco. Segundo Jesus, a localidade tem muita riqueza natural, e seu povo vivia da pesca, da caça e da agricultura. Porém, diante da crise pela qual a o país, quase 90% dos indígenas deixaram a região. “A inflação está cada vez mais alta, e não há quem consiga controlar isso”, disse.

 

Além da crise humanitária do povo Yanomami, Roraima convive desde 2016 com a tragédia econômica que leva milhares de venezuelanos a deixar todos os dias seu país. É o caso da artesã Arjenia Centeño, 43, também indígena Warao. Os pais fugiram da crise em 2019, e ela precisou vir de forma definitiva no fim do mesmo ano, quando a mãe adoeceu. Para sobreviver, criou uma cooperativa de artesanato que usa como base a fibra do buriti e hoje alimenta quase 20 famílias. Mesmo distante da terra natal, Arjenia conta que a comunidade busca manter vivas as tradições de seu povo: “Temos nossa cultura, como dança, música, crença, além da língua Warao”. 

 

Vulnerabilidade social

 

Segundo o oficial de campo responsável pela coordenação dos abrigos da Acnur, Rafael Levy, os Warao foram alguns dos primeiros venezuelanos a chegarem ao Brasil. “Muitos se deslocaram de maneira precária e chegaram com a saúde debilitada e até desnutrição”, explica.

 

A maioria das solicitações de refúgio se concentra em Pacaraima e Boa Vista. A Acnur e as Forças Armadas istram 11 abrigos na capital e outros dois no município do interior, onde vivem cerca de 6.300 pessoas, das quais 2.500 são menores de idade. Conforme o subcomitê federal para recepção, identificação e triagem dos imigrantes, em dezembro, 414.502 venezuelanos viviam no país e quase 14 mil pessoas entraram no Brasil.

 

"Vim buscar nova oportunidade de vida”

 

Maior abrigo de Boa Vista, o Rondon 1 tem mais de 1.900 pessoas que vieram de distintas realidades, mas que enfrentam dificuldades parecidas. É o caso de Manuel Castillo, 56, que era motorista da PDVSA, estatal petrolífera e considerada a maior da Venezuela. “Ganhava muito bem, só que, com o tempo, deixou de ser suficiente até para comer. Vim buscar uma nova oportunidade de vida e agora vou para Goiânia trabalhar como motorista”, diz. Ele integra projeto de interiorização, em que venezuelanos são conectados a postos de trabalho em outros Estados. “Me dá muita tristeza”, desabafa Paulo Figuera, 39, que veio com a mulher, Ester Malaver, 52, e a filha de 14 anos. Ele conta que o aumento da violência também contribuiu para a decisão de deixar a Venezuela. 

 

Debaixo da copa das árvores da praça que ficou conhecida nacionalmente por ter abrigado milhares de pessoas no início da crise migratória venezuelana, o engenheiro mecânico Bernardo Lopes, 62, e a mulher, Sunilde Bolívar, 63, dividem um pedaço de pano em meio à grama. O casal vive em um abrigo próximo à rodoviária e só pode entrar no período da noite. “Não querem contratar ninguém como nós”, afirma, referindo-se à idade. A poucos metros, Jenifer Campo, 28, tenta vender salgadinhos no sinal, com a filha de 9 meses no colo. Ela chegou com a mãe e a prima há duas semanas, e, desde então, elas dormem na rua. “Já não se consegue comprar alimento (lá)”, lamenta.