O que o extermínio Yanomami tem a ver com sua vida?
Antropólogos dizem que, além de não conhecer a fundo a cultura do país, não indígenas brasileiros perdem referências sobre os modos de vida e conhecimentos ancestrais dos povos originários

O extermínio de povos originários escancara o fracasso humano em garantir sua própria existência. Apesar de a morte de crianças por desnutrição e o assassinato de líderes indígenas causarem revolta momentânea, essa tamanha tragédia pouco nos faz refletir qual é, de fato, nossa perda.
Para o antropólogo Marcelo Moura, pesquisador da comunidade Yanomami Maxokapiu, o maior dano, sem dúvida, é a privação de vidas indígenas. “Mas, além disso, perdemos também a nossa própria dignidade enquanto seres humanos vivendo em uma sociedade capaz de produzir um extermínio nesse nível”, analisa ele, que é doutorando em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ. “Perdemos em território, em meio ambiente, em conhecimento, em saberes sobre animais e plantas”, elenca Moura. “Perdemos o futuro dessas crianças, aprendizado, diálogo, formas de cuidado, de trato, arte, cultura. Perdemos tudo”, lamenta.
O sentimento é compartilhado pela professora emérita da Universidade de Brasília (UnB) e antropóloga Alcida Rita Ramos. A pesquisadora, que dedicou 50 dos seus 85 anos ao povo Yanomami, enumera os prejuízos: “Primeiro, perdemos uma parcela iluminada da humanidade. Segundo, perdemos a oportunidade de mostrar que somos uma sociedade decente que respeita seus povos indígenas. Terceiro, perdemos a chance de redimir a história do Brasil, que se construiu sobre cadáveres indígenas. Quarto, perdemos um manancial de conhecimentos que vão fazer falta ao planeta em colapso. Quinto, roubamos das próximas gerações os importantes ensinamentos que os Yanomami nos podem dar sobre como viver e deixar viver sem exterminar nem pessoas, nem o meio ambiente”.
Do modo como lidam com a terra à forma como se relacionam entre si ou do jeito que compreendem a divindade à maneira como experimentam a morte, em quase tudo os Yanomami têm um conceito próprio e único. “Conhecer esse mundo não é uma tarefa ligeira”, alerta a antropóloga. “É necessário, antes de mais nada, desmascarar mentiras grosseiras herdadas de gerações cheias de preconceitos contra a diversidade humana, que é o que pode fazer deste país um lugar decente. Ter a sensibilidade de entender, ou ao menos tentar entender, os princípios básicos que regem a sociedade Yanomami. Ouvir e levar a sério o que dizem os próprios Yanomami sobre si mesmos e sobre nós”, diz.
Para Alcida Ramos, é preciso “respeitar a inteligência indígena, que soube manejar a floresta e até fazê-la crescer sem perda de qualidade de vida”. “Esses são alguns pontos de conexão entre os povos indígenas – mais especificamente os Yanomami – e nós, que perdemos o sono com o aquecimento global, com a ameaça de secas eternas, com a fome planetária”, compara. Ela lança a reflexão: “Os povos indígenas nos dão de bandeja possíveis alternativas ao desastre planetário. Vamos deixá-las escapar?”