COMPORTAMENTO

‘Broderagem’: o jogo onde homens podem tudo, menos ser gay

Com a premissa de que ‘não é gay se for zoação’, prática possibilita o encontro sexual entre homens, desde que sem afeto e afetação

Por Alex Bessas
Atualizado em 16 de maio de 2025 | 10:05

Um tapa ali, um apertão acolá, talvez um olhar mais demorado para a cabine de banho ou mictório ao lado, uma piadinha provocativa e, depois, quem sabe, um algo a mais: na “broderagem” – prática sexual entre homens heterossexuais, que não se reconhecem gays ou bissexuais –, a intimidade geralmente vira brincadeira e abre as portas para um homoerotismo camuflado, com camadas de zoação ou mesmo de iração, em uma lógica que, ao mesmo tempo, desafia e se apega aos limites do que é considerado “coisa de homem”.

Como se fosse uma zona mais ou menos livre para a expressão da sexualidade – ainda que cercada da necessidade de manutenção de certos padrões e performances –, é curioso perceber como a dinâmica se insere em um contexto social em que trocas de carinho e afeto entre homens, mesmo sem conotação sexual, tendem a serem lidas como uma ameaça à virilidade. A própria bissexualidade, quando pública, é invisibilizada diante de tanta rigidez, sendo tratada como uma forma de mascarar a homossexualidade.

É diante dessa realidade que a relativa permissividade da “broderagem” surge como um dispositivo que revela como ainda é preciso cumprir um roteiro rígido para ser visto como “homem de verdade”, ainda que esse script, na surdina, ita brechas.

O tema, de certa maneira, aparece nos estudos do antropólogo Victor Hugo Barreto, que analisa relações entre homens em festas de orgia. Segundo ele, a prática envolve trocas sexuais em ambientes masculinos, com o desejo mascarado pelo tom de brincadeira. Essa carga erótica é justamente o que a diferencia do “brodagem”, termo usado pelo pesquisador Lucas Moreira para descrever interações entre homens em academias de rua de Salvador – encontros marcados por rituais de masculinidade, mas sem conotação sexual.

O jogo da ambiguidade

Barreto observa que essas interações seguem uma lógica de jogo – quase uma “gamificação” da masculinidade –, em que o participante sempre precisa escolher onde vai perder. “Como naquele desafio que foi moda no TikTok, onde um cara se aproxima de outro, geralmente um amigo, para dar um selinho. Nessa brincadeira, a pessoa se vê encurralada entre dois estereótipos: se não desvia, é celebrado por não ‘amarelar’, mas, sendo hétero, precisa lidar com o estigma de ter beijado outro cara; se recua, vira alvo de zoação por ser ‘frango’ – covarde demais para encarar o desafio”, menciona.

Lógica análoga vale para interações mais explícitas, como em ambientes de permissividade negociada – onde o corpo do outro se coloca como um território ível, desde que tudo permaneça no campo da brincadeira, sem que nada ali seja encarado como muito sério ou definidor –, recusar um toque ou uma provocação sexual pode render rótulos como o de “apelão”, de ser aquele que estraga a diversão. Daí que o preço da não participação pode ser a exclusão.

Outro marcador da “broderagem” é a constante vigilância mútua da masculinidade – de si e do outro. Pode parecer contraditório, mas, para a dinâmica funcionar, todos precisam reforçar estereótipos de macheza. “O sujeito só se permite essas experiências porque está entre seus pares, entre aqueles que ele vê como ‘Homens com H’”, explica Barreto, inteirando que qualquer sinal de fragilidade, feminilidade ou afetação – um “dar pinta” – ameaça o frágil equilíbrio desse paradoxal jogo.  

Por isso, o desejo raramente se expressa de forma direta. Ele surge disfarçado de competição, como comparações de partes do corpo, como a firmeza das coxas ou a definição do tanquinho, ou como elogios “broders”, em que adjetivos como “bonito” ganham formas mais indiretas, como o “boa pinta”. Ao fim, a zoação vira linguagem, permitindo contato físico e mesmo excitação, desde que ninguém ita querê-los.

Lugar de recreação

A prática, em geral, também tem idade e endereço: costuma florescer entre homens mais jovens e em ambientes de lazer e sociabilidade masculina – embora apareça, sob outras formas, também em espaços como aplicativos de sexo e pegação, caso do Grindr, onde se proliferam perfis com o disclaimer: “só broderagem”. Nestes casos, claro, perde-se o horizonte da amizade pregressa entre os praticantes, mantendo-se outras características.

“Quando invocamos essa expressão, nosso imaginário nos leva a vestiários de futebol, de academias, clubes…”, comenta, sinalizando que essa associação não se dá à toa: essa ambientação, afinal, reforça o tom de brincadeira, contribuindo para a ideia de que o que acontece ali não terá repercussões muito definitivas. É como se, naquele contexto específico, o sujeito estivesse liberado para realizar atos que, se feitas em outros espaços, ele mesmo consideraria como definidoras de sua orientação sexual.

O perfil mais jovem dos praticantes, por sua vez, tem relação com a leitura de um “comportamento laboratório” – que tende a ser mais comum em pessoas em processo de descoberta da própria sexualidade. “Pode ser um escape nesse sentido, permitindo que o sujeito, sem assumir compromissos públicos, vai ver como funciona aquela experiência”, aponta, inteirando que essa fluidez, longe de ser uma anomalia, está plenamente alinhada à expressão da sexualidade humana – “que é, por si, um pouco brincadeira, uma experimentação, um pouco as duas coisas juntas”, define.

Mas o elemento chave dessa dinâmica, ressalta Barreto, é a ambiguidade calculada: “A grosso modo, é como se o cara pensasse: ‘Se eu pegar no pau do meu amigo, isso me faz menos homem?’”. A “broderagem”, portanto, desafia a norma sem rompê-la – ou melhor: testa até onde a norma pode dobrar antes de quebrar.

‘Válido, até certo ponto’

Para o psicólogo Samuel Silva, especializado em atendimento ao público LGBTQIAPN+, a prática, de fato, é um bom exemplo de como a sexualidade é mais complexa e fluida do que pensamos, mas tem seus problemas.

“O desejo é insubordinado e encontra formas de se satisfazer, mesmo que recorra a atalhos clandestinos para prazeres socialmente condenados e reprimidos”, crava o profissional, que categoriza a “broderagem” como uma burla criativa do sistema heterocisnormativo.

Ele acrescenta que, de uma perspectiva pessoal, funciona: “Engana-se o sistema e, talvez, a si próprio em prol da satisfação. E, se nessa dinâmica não estão sendo produzidas opressões e violências, é uma estratégia válida até certo ponto”, comenta, para, em seguida, levantar questões sobre suas limitações e contradições. 

O psicólogo lembra que, diferente do ativismo LGBTQIAPN+, que confronta frontal e abertamente a repressão sexual, a “broderagem” opera por outra lógica, que permite uma libertação temporária do corpo e do desejo, mas mantém intactas as amarras culturais, com o prazer sendo vivido, mas no “armário da zoação”.

Essa dualidade, critica, tem um preço: faz da prática eficaz para o gozo imediato ao mesmo tempo que reforça o mesmo sistema que a obriga a ser secreta. Preservando os estereótipos de masculinidade – a aversão ao ‘afeminado’, a hierarquia entre ativo e ivo –, a “broderagem”, enfim, acaba sendo cúmplice do mesmo machismo que precisa driblar.

Testando limites

Ainda que com seus poréns, não é de hoje que práticas como a “broderagem” tensionam os códigos da masculinidade e da heterossexualidade. 

Na década de 1970, por exemplo, o antropólogo inglês radicado no Brasil Peter Henry Fry já investigava esse paradoxo à brasileira: homens que transavam com outros homens sem deixar de se considerar héteros – desde que sempre “fizessem o papel de macho”, ou seja, assumindo exclusivamente a posição ativa durante a penetração.

Em um episódio do podcast “É Tudo Culpa da Cultura”, o apresentador Michel Alcoforado retoma essa discussão a partir de um artigo publicado por Fry na segunda metade do século ado. “É por conta desse modelo de classificação da realidade, divida entre quem enfia e quem é enfiado, quem mete e quem é metido, que o pessoal vai fazer a ‘broderagem’, faz ‘banheirão’ e se acha hétero, e tem horror, um verdadeiro horror, ao fio terra”, comenta, assinalando como, naquela época, portanto, o prazer anal era encarado como a última a fronteira da masculinidade.

Em seguida, se referindo a pesquisas realizadas por Victor Hugo Barreto, o podcaster mostra que as regras do jogo estão mudando e, para alguns grupos, mesmo essa fronteira já foi superada, com a masculinidade se confirmando não pela posição sexual, mas pela performance. “Pode dar, pode fazer sexo oral, pode tudo – desde que faça isso como ‘homem’”, arremata.

Essa redefinição está documentada no livro “Festas de Orgia para Homens” (ed. Deviris, 2021), onde Barreto investiga encontros sexuais no Rio de Janeiro que reúnem até 200 participantes. Nelas, é esperado que os frequentadores se adequem a certos padrões, como ter um comportamento discreto, sem “dar pinta”, e ter um corpo que, no imaginário popular, está associado à figura do “espartano” – ou seja, homens corpulentos, musculosos, que performam uma masculinidade demarcada pela virilidade e macheza. Curiosamente, nesse contexto, o macho é justamente o que a mais, não fraqueja e não expressa “nojinho” de fluidos corporais, como esperma e urina, e não deixa escapar trejeitos femininos.

Na pornografia

Além de uma realidade cotidiana e clandestina, as interações sexuais entre homens que se apresentam como heterossexuais constituem um filão nas produções pornográficas e atraem uma ampla audiência do público gay.

No último relatório anual publicado pelo Pornhub, um dos principais sites adultos do mercado, a categoria “Straight guys” (“Caras héteros”, em português) ficou entre as três mais assistidas por esse segmento, atrás apenas de Twink (gíria para escrever um homem jovem, magro e com aparência juvenil) e Bareback (estrangeirismo usado para se referir à prática sexuais sem a utilização de um preservativo). Já entre os termos mais buscados, “straight guys first time” (“caras heterossexuais pela primeira vez”) ocupou a quinta posição.

Tanto interesse, sustenta o psicólogo Samuel Silva, se relaciona a uma série de fatores, como ver naqueles corpos um ideal de masculinidade. Também entra na conta a excitação causada por uma experiência que transgride a norma e testa seus limites. 

“A masculinidade hegemônica ou tradicional prega que homem deve ser extremamente viril, sentir prazer com (várias) mulheres, ser dominador e utilizar seu órgão genital em máxima potência. Essa masculinidade não permite diálogo com feminilidades, masculinidades desconstruídas e prazeres diversos”, assinala.

“Logo, observar homens heterossexuais, que se colocam como representantes dessa masculinidade, é fantasiar e gozar com a desconstrução desse ideal e sua abertura para uma masculinidade mais ível ao nosso desejo”, reflete.