Nas últimas décadas, Belo Horizonte viu muitas de suas casas noturnas mais emblemáticas fecharem as portas, enquanto bares, que antes atendiam madrugada afora, foram pouco a pouco mudando seus horários para antecipar o fim do expediente, deixando sem lugar as criaturas da noite, os “inimigos do fim” – que, agora, se sentissem à beira da extinção.
A crise é tão séria que já entrou no radar da atual gestão municipal. Em mais de uma oportunidade, o prefeito Álvaro Damião demonstrou preocupação e intenção de reverter esse quadro. “BH precisa estar acordada depois de meia-noite”, reclamou em entrevista a O TEMPO, enquanto sugere medidas para fomentar a cultura boêmia da cidade – como a ampliação da oferta de linhas de ônibus funcionando em horários estendidos para que trabalhadores e frequentadores da noite circulem com tranquilidade.
Essa perda de fôlego do movimento na madrugada, porém, não é exclusividade belo-horizontina – e pode estar associada a uma série de transformações, levando a mudanças de hábitos que tornaram menos atrativa aquela antiga experiência enluarada.
A bebedeira sem fim, por exemplo, parece não ter mais o mesmo apelo: segundo o Relatório Covitel, que monitora hábitos de saúde no Brasil, pela primeira vez, os mais jovens não lideram o consumo regular de álcool, sendo superados por pessoas entre 45 e 64 anos. Além disso, a porcentagem de jovens da geração Z que consomem álcool três ou mais vezes por semana caiu de 10,7% antes da pandemia da Covid-19 para 8,1% em 2024. Outros estudos já indicaram que a crise sanitária, entre outros efeitos, acelerou um processo de “virtualização” das relações e interações humanas e ampliou as preocupações com a saúde – e com a construção de hábitos saudáveis, que, certamente, aparecem mais associadas a rotinas regradas. Mas estas são apenas algumas pistas do que pode estar por trás de um fenômeno maior.
Seja como for, fato é que a vida noturna das grandes cidades está em franco processo de mutação – ou, como propõe o professor e pesquisador Victor Hermann, talvez esteja vivendo uma verdadeira “catástrofe” (leia a íntegra da entrevista aqui).
Autor do livro “Zona Cinza: A Classe Média no Meio da Catástrofe” (ed. Relicário), ele compara o esvaziamento noturno ao que ocorreu com os centros urbanos durante o dia, impulsionado pelo medo generalizado da violência. Agora, propõe, um novo pânico se instalou: o temor da violência afetiva, amplificado pelas redes sociais. Memes, desabafos e discursos supostamente críticos retratam o encontro com o outro como algo perigoso ou decepcionante. “O sensacionalismo desencoraja o investimento no acaso, no desconhecido, na diferença”, reflete.
Doutor em mídias, artes e literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que se descreve como alguém fascinado pela noite – enquanto território do desejo, do risco e da desordem –, Hermann prossegue descrevendo um processo de esvaziamento de uma vivência de mistério e encontro madrugada adentro, que cede lugar a outro tipo de experiência, que ele chama de “noite branca”, mais pautada pela previsibilidade e filtrada por algoritmos. “As plataformas digitais oferecem alternativas controláveis, como maratonas de séries, encontros via aplicativos e festas hipernichadas, onde tudo pode ser pré-selecionado – até a playlist”, diz, concluindo que, nesse sentido, a noite ou a ser privatizada e moldada pelo consumo, perdendo o que tinha de mais vital: a surpresa.
Mudança de paradigma
As elucubrações de Victor Hermann aparecem, de certa maneira, nas análises de Aluizer Malab, produtor cultural com trajetória ligada à cena musical de Belo Horizonte. Mas, para ele, o que se desenha é menos uma “catástrofe” ou “crise” e mais uma reconfiguração, que, acelerada pela pandemia, pode até ser bem-vinda.
“A insegurança, o custo elevado e a lógica do trabalho 24/7 tiraram o glamour da madrugada”, avalia, inteirando que, sim, as redes sociais também precisam ser consideradas nessa equação. Para ele, hoje, são os programas diurnos e até matutinos – como brunchs, festas sem álcool, cafés com DJs – que entraram no radar ao oferecer alternativas alinhadas a novas tendências, como a preocupação com a saúde.
Malab, por outro lado, pondera que a noite não desaparece, mas se reinventa. Festas eletrônicas e bailes funk, por exemplo, seguem povoando esse território, cada um à sua maneira. “Enquanto setores médios migram para experiências diurnas, o baile funk resiste como espaço de afirmação identitária e ocupação do território”, avalia.
Esses focos de resistência notívaga também são reconhecidos por Hermann, que cita os botecos de tradição boêmia, as batalhas de rap, os bailes funk e a cena techno belo-horizontina como trincheiras na defesa da experiência da noite. “As raves de BH são um bom exemplo dessa luta pela escuridão. Muitas não têm local fixo. E os coletivos vão além: frequentemente, divulgam o endereço só na última hora. Um gesto simples, mas suficiente para recobrir o evento com um véu de mistério – o que certamente frustra quem espera uma experiência noturna totalmente pré-programável”, enfatiza.
Para o pesquisador, por trás do declínio da “noite escura” – aquela do acaso e da alteridade – e da ascensão da “noite branca” está a crise da empatia, uma ferramenta essencial para recuperar o prazer do encontro imprevisível. “Sem empatia, não há como decodificar os signos não verbais que são a essência do charme e do erotismo”, argumenta. Malab, por sua vez, é mais otimista: “A noite pode e vai se reinventar. Já vemos baladas com experiências sensoriais, menor lotação, propostas imersivas, mais conexão e menos excesso. É menos sobre acabar ou voltar, e mais sobre se transformar. Segue o baile!”.