Mal-estar

Redes sociais podem influenciar a degeneração da saúde mental

Para especialistas, esses redes sociais não somente afetam o comportamento como também influenciam cada vez mais o autoconceito e a autoestima


Publicado em 25 de agosto de 2021 | 03:00

Neste ano, como nunca antes em uma edição das Olimpíadas, o assunto da saúde mental tornou-se incontornável quando a ginasta norte-americana Simone Biles, em nome do próprio bem-estar psicológico, abriu mão de competir em categorias em que era favorita ao ouro. De alguma maneira, o gesto da atleta levou ao pódio um tema que já vinha ganhando espaço no debate público. 

Nesse sentido, a campanha do Setembro Amarelo, que é realizada anualmente sendo dedicada à conscientização e à prevenção ao suicídio, é um bom exemplo de ação que  conta com expressiva adesão da população. E, felizmente, essa é apenas uma das frentes que se propõe a refletir sobre a delicada temática.

Nas redes sociais, a qualquer momento do ano, variações de mesmo conselho – “faça terapia” – ecoam quase como um mantra, ou melhor, um meme. Nesta semana, por exemplo, fez sucesso uma imagem que, replicada à exaustão, questionava: “E fora do story, você está bem?”. Contudo, essa disposição aparentemente mais constante de se falar sobre saúde mental ainda parece estar longe de ser suficiente, sendo incapaz de frear a atual deterioração do bem-estar psicológico.
 
É o que defendem a professora Denize Sepulveda, coordenadora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e o pesquisador Yuri Sepulveda, doutorando em estudos culturais na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em Portugal. 

Na avaliação da dupla, aliás, em sua formulação, a pergunta que circulou nas redes chega a soar contraditória. Isso porque, ao situar o problema como exterior às mídias digitais, o questionamento acaba ignorando que as dinâmicas da virtualidade são parte da engrenagem que mobiliza certo mal-estar psíquico em boa parte da sociedade contemporânea. 

Ocorre que, ainda que soe paradoxal, ao mesmo tempo em que reconhecem que a digitalidade contribuiu para atenuar os efeitos da maior crise de saúde pública dos últimos cem anos, os pesquisadores acreditam que esses espaços têm se apresentado como lugar de proliferação da degeneração da saúde mental.  

A análise deles encontra paralelos no que diz o psiquiatra e psicanalista Marcelo Veras. Autor do livro “Selfie, Logo Existo”, de 2018, ele também diz acreditar que “a possibilidade de conexão virtual salvou o mundo de uma catástrofe sem precedentes durante a pandemia da Covid-19”, quando, nos primeiros meses, o isolamento social se tornou a principal barreira à disseminação da doença. 

“Contudo, como todo remédio, tem os efeitos colaterais”, pontua o estudioso, acrescentando que “a hiperconectibilidade fez com que fosse impossível se separar das telas, e nunca antes a população mundial ou tanto tempo sob estimulação cortical. Como resultado, temos a ansiedade, o aumento da irritabilidade e, sobretudo, a insônia, talvez a queixa que mais tenha escutado nos atendimentos virtuais”. 

O problema das redes 

Aproximando a problemática do mal-estar social das mídias digitais, Denize e Yuri Sepulveda fizeram uma série de apontamentos críticos no artigo “O dilema das redes e a modulação dos comportamentos dos usuários”, publicado no mês ado

No texto, os pesquisadores anotam que “as redes sociais não controlam somente o comportamento e o tempo, mas influenciam, também, e cada vez mais, o autoconceito (imagem ou ideia que o indivíduo faz de si mesmo), a autoimagem (descrição que a pessoa faz de si, da forma como ela se vê) e a autoestima (a qualidade, o valor que o indivíduo se dá em relação ao que acredita ser) das pessoas”. 

Citando uma reportagem de O TEMPO publicada em 2019, mãe e filho trazem em sua análise o que seria a expressão mais dura desse mal-estar: o fato de ter havido, entre 2006 e 2015, um aumento de 24% no número de suicídios entre adolescentes e jovens, conforme indicou uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de São Paulo. “E alguns dos motivos apresentados dizem respeito à depressão, à baixa tolerância a frustrações e ao alto grau de cobrança em relação à autoimagem”, descrevem. 

Em entrevista, a dupla mantém o tom crítico. “No momento atual, as redes, além de vigiarem e punirem os sujeitos para modelar seus comportamentos, também lucram”, examinam, sinalizando que esse processo não começou agora, mas se intensificou com a emergência sanitária. “De repente, todas as esferas da vida estavam entrelaçadas com as virtuais. O chefe abusivo foi para o WhatsApp, os grupos de trabalhos também... Assim, não há como não levar em conta os níveis no aumento da deterioração da saúde mental. Não é à toa que várias pesquisas têm sido desenvolvidas em muitas universidades públicas brasileiras tendo como foco a saúde mental da população durante a pandemia. Nós mesmos já respondemos mais de cinco questionários sobre essa temática”, expõe.  

E se a pandemia escancarou os problemas das redes sociais e da saúde mental, ações promovidas em função dessa crise podem apontar saídas. “Vimos que o Instagram colocou um filtro sobre a Covid-19 em qualquer publicação que toque no assunto. Isso só nos demonstra que o algoritmo, que hoje é usado para venda, poderia muito bem ser usado para abrir o debate sobre saúde mental, evitar as fake news e conseguir uma maior democratização do espaço virtual”, concluem Denize e Yuri Sepulveda. 

Minientrevista 
Marcelo Veras 
Psiquiatra, psicanalista e autor do livro “Selfie, Logo Existo” 

1. Com a pandemia e a necessidade de isolamento, que, nos primeiros meses, era a única ferramenta de contenção da doença, houve uma aceleração do processo de virtualização das relações humanas. Por um lado, muitos celebraram que a digitalidade permitiu uma redução dos impactos da solidão, por exemplo, e pode ter atenuado outros efeitos adversos, como o adoecimento mental. O senhor concorda com essa análise? 

A consolidação da virtualidade após a pandemia deve inicialmente ser vista dissociada da questão moral. Não se trata de saber se o virtual é bom ou ruim, mas saber o que fazer com a inelutável modalidade do visível – expressão do escritor James Joyce – no mundo atual. O virtual veio para ficar. Contudo, a chegada das relações virtuais à humanidade é nova demais, nem duas décadas se compararmos com os mais de 2.000 anos de cultura ocidental.  

Ou seja, toda a herança acumulada de experiências de vida, como amar, trabalhar e mesmo fazer sexo, teve que ar pelo crivo da experiência digital. Incluo aqui a própria psicanálise, que sempre foi praticada com a presença de duas pessoas em uma sala, uma experiência profundamente íntima, e que agora tem que se ver com situações curiosas, como, por exemplo, o fato de que o analista agora “entra” na casa de seus pacientes, é o paciente que tem que encontrar um lugar na sua intimidade para ser atendido. 

Acredito que a possibilidade de conexão virtual salvou o mundo de uma catástrofe sem precedentes durante a pandemia. Contudo, como todo remédio, tem os efeitos colaterais. A hiperconectibilidade fez com que fosse impossível se separar das telas, e nunca antes a população mundial ou tanto tempo sob estimulação cortical. Como resultado, temos a ansiedade, o aumento da irritabilidade e, sobretudo, a insônia, talvez a queixa que mais tenha escutado nos atendimentos virtuais. 

2. Por outro lado, em seu livro “Selfie, Logo Existo”, o senhor analisa como as redes podem ser um agente de uma epidemia de mal-estar social. Por mais paradoxal que pareça, acredita que as redes podem ter, ao mesmo tempo, contribuído para atenuar os efeitos da crise, em curto prazo, mas se mantido como espaço para a proliferação desse mal-estar? 

Quando escrevi o livro “Selfie, Logo Existo” estava mais atento ao modo como a relação das pessoas com sua própria imagem narcísica havia sido abalada. Anteriormente, nosso narcisismo era testado em ambientes como a família, a escola ou o emprego. Com as mídias sociais, houve uma fascinação quase hipnótica pelas selfies, escravizando as pessoas em postagens de si durante todo o dia. A partir desse momento, o que percebemos é que o narcisismo ficou refém de likes de pessoas de toda parte. Um o em falso, e um movimento de linchamento virtual pode ser desencadeado. A cultura do cancelamento encontrou na velocidade das redes um campo fértil para se espraiar, varrendo muitas vezes o tempo de ouvir os contraditórios, o tempo do outro, tudo ou a ter que ser decidido e postado aqui e agora. 

As fake news são um exemplo, conheço pessoas bem instruídas, com doutoramento e pós-doutoramento, que me am notícias sem nenhum senso crítico. Mal se recebe algo que causa indignação, e um dispositivo pulsional é ativado e faz com que o sujeito impulsivamente tenha que compartilhar para outros. Esse tipo de compartilhamento, na verdade, é quase um modo de se aliviar da angústia que é pensar lentamente nos dias atuais.  

Com a pandemia, o lado positivo é que as redes sociais, que serviam muito mais para separar as pessoas, aram realmente a servir para conectá-las. Tanto que as selfies diminuíram bastante, surgiram as lives, ou seja, a necessidade de mostrar o corpo vivo em tela, menos trabalhado por filtros e versões editadas de si mesmo. As lives trouxeram de volta para as redes sociais um aspecto mais humano das relações, como estar dando uma conferência e ter que interromper por conta do barulho do carro do ovo na rua. 

3. Concomitantemente a esse mal-estar da humanidade, muito se fala em saúde mental, tema que frequenta as mídias digitais. Neste ano, como nunca antes em uma edição das Olimpíadas, o assunto ficou em relevo. Ao escalar dessa maneira, o debate sobre o adoecimento mental pode se constituir como uma fronteira para essa epidemia de mal-estar? Aliás, vê caminhos para que a humanidade supere essa epidemia? 

Por estrutura – e esse é o aprendizado que podemos ter com a psicanálise –, é impossível um mundo feliz. Talvez esta seja uma das razões de a psicanálise não ser tão pop quanto as terapias de autoajuda. Mas sem dúvida é possível viver melhor quando deixamos de lado a felicidade alheia, o sucesso do vizinho, e amos a pensar no modo como podemos encontrar saídas melhores com aquilo que temos nas mãos.  

Embora eu tenha nascido no Rio, sou baiano radicado e adoro morar aqui. Muitas vezes ouvi piadas sobre a preguiça dos baianos, na verdade, uma atualização do racismo, que ainda é forte no Brasil. Pois levo a sério uma frase que aprendi aqui e que talvez agradasse ao filósofo sul-coreano Byung Chul (autor de obras como “Sociedade do Desempenho”, de 2015): “Nunca faça hoje o que você pode fazer amanhã, pois de repente amanhã não precisa fazer”. Somos uma sociedade que se exaure fazendo coisas que não precisa realmente, e ainda chamam isso de “felicidade”.