ados 60 anos, estudiosos do golpe militar afirmam que os efeitos do período não podem ser esquecidos. Ter uma lembrança presente sobre os efeitos da ditadura, avaliam, é a forma de lembrar a população sobre o impacto e evitar que erros do ado se repitam, especialmente sob pedidos insistentes e atuais de parte da população por uma nova intervenção militar. 

A mobilização militar que destituiu o então presidente João Goulart começou em 31 de março de 1964. Por mais de 20 anos, foram 434 mortes e desaparecimentos políticos, de acordo com o reconhecimento da Comissão Nacional da Verdade. A história também descreve tortura, censura, exílio e outros tipos de punições, algumas com marcas irreversíveis, a quem desagradasse o sistema. 

Na primeira eleição após o fim da ditadura e o retorno da democracia, em 1989, os abusos do período foram amplamente abordados. Esse pensamento de saldo negativo, que foi perpetuado ao longo dos anos seguintes ao fim do militarismo, tomou outra forma no Brasil recente. Em 2016, durante a abertura do pedido de impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), uma homenagem foi feita ao coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos mais emblemáticos torturadores da ditadura. 

“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. [...] O meu voto é sim”, disse o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que na época exercia mandato de deputado. Dilma foi presa em 1970 por “subversão” ao se opor ao regime e declarou que foi submetida a pau de arara, palmatórias, socos e choques. Sobre essa última forma de tortura, descreveu ser “uma dor que não deixa rastro, só te mina”. 

Especialistas analisam que a defesa de grupos por uma atual tomada de poder por militares ganhou força a partir de 2018. Nessa mesma época, Jair Bolsonaro (PL), virou protagonista na disputa nacional, e tentou “reescrever” a história colocando o período como o melhor do que foi, discurso absorvido por seus apoiadores. Estudiosos destacam, contudo, que essas pessoas não viveram o auge da ditadura e têm visões distorcidas sobre o impacto do período na sociedade.

Ditadura deve ficar em 'lugar adequado da história' e ser ensinada nas escolas 625o6k

“Ditaduras não têm momentos felizes. Houve censuras, violência, desrespeito aos direitos humanos, intervenções de todo tipo na imprensa, em universidades, editoras, livrarias. Muita gente foi presa, torturada ou desapareceu. E a população foi privada do direito de escolher seus governantes durante 20 anos. Isso tem que ser lembrado para que as pessoas valorizem o que nós temos hoje, que é uma situação democrática e um momento em que todo mundo pode se expressar”. 

A avaliação acima é do historiador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo Patto Sá Motta, também doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). “Tem que ser ensinado para as crianças, inclusive, a diferença de ditadura para democracia”, completou. 

O mestre em Direito do Estado pela USP e professor de Direitos Humanos, Leonardo de Moraes, avalia que “não é válido para a formação cultural de um povo que um golpe militar caia no esquecimento”. “Um país só consegue amadurecer quando ele mantém razoavelmente na superfície as suas sequelas. Esquecer se torna muito complicado porque a possibilidade de você voltar a repetir os erros do ado é imensa. O ideal seria saber valorar essa memória, colocá-la no lugar adequado da história”, disse. 

Para Moraes, que faz pesquisas sobre as consequências da ditadura na sociedade, o país tem, hoje, duas classes de herdeiros da época dominada por militares. A primeira é composta por idosos economicamente ativos que, entre os anos de 60 e 80, viram seus pais ascenderem economicamente por questões que tinham mais influência do cenário internacional. "Uma determinada classe média não muito letrada se atém a essa lembrança como se fosse uma lembrança de estabilidade", contou. 

O segundo grupo, na visão dele, abrange "uma classe intelectual que tem uma lembrança diferenciada com relação ao golpe porque sabe que liberdade não se negocia e não é trocada por dinheiro”. “Hoje o que acontece é que nós temos essas duas visões que não se misturaram e não foram transmitidas adequadamente para as novas gerações porque pouco se falou, pouco se reabordou e porque as escolas não trabalham esse conteúdo adequadamente", completou.  

'Pedidos de intervenção fragilizam garantias básicas e sociais' 5k364

Há um terceiro grupo, como elenca Moraes, que manifesta por uma nova intervenção militar. Esse é formado por jovens que não têm o adequado a um pensamento filosófico ou até mesmo a um ensino básico sobre o funcionamento das instituições brasileiras. Como exemplo, ele cita que grande parte da população faz ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Congresso Nacional sem saber que os presidentes desses órgãos estão em semelhança hierárquica ao presidente da República. 

"É difícil para essa fatia da população entender que não se pode rasgar uma Constituição, que é uma conquista histórica, e que você entregar poderes equivale a você entregar toda a sua liberdade", frisou. "Porque se a Constituição desaparece, não existe nenhum documento escrito que garanta nem a sua vida. A Constituição se inicia falando do direito à vida. As pessoas acham que parece um formalismo, mas é um engano porque todas as legislações, inclusive a lei de aluguel que impede que você seja despejado no meio da noite, só são aplicadas porque existe a Constituição”, continuou. 

Falta, na visão dos especialistas, profundidade no ensino do que foi a ditadura nas escolas, além de temas sobre direitos humanos. “A minha impressão é que ao longo dos últimos anos, os professores de história não deram a devida ênfase a esse período da ditadura e muitas vezes o ano escolar termina sem que seja ensinado esse tema. Eu acho que é bem provável que nos últimos anos as crianças tenham aprendido muito pouco sobre isso nas escolas”, atribuiu Motta.

Ainda na avaliação do professor da UFMG, houve uma campanha sistemática nos últimos anos para desacreditar historiadores, a universidade e o conhecimento científico. Dessa forma, há uma crença do que é dito nas redes sociais, que pode, inclusive, "manipular" uma parcela da população que não tem senso crítico. Os pedidos atuais de intervenção militar, para o historiador, acontecem por certa “confusão” desse grupo favorável.

"Eles misturam democracia com ditadura, falta de liberdade com liberdade, escondem a violência cometida pela ditadura, tentam justificar o que aconteceu falando que foi para salvar o Brasil da suposta ‘ditadura comunista’. Isso é irônico e é uma piada. Por que você implantar uma ditadura para sair de outra?", questionou. 

'Faltou punição a políticos', avalia estudioso 252g5w

A retomada de pedidos por um movimento militar acontece, na visão de Motta, pela falta de punição a políticos que exaltam ditadores e tentam reescrever essa parte da história em espaços unicamente democráticos, como nas tribunas da Câmara dos Deputados e do Senado. “O Parlamento deveria ter punido deputados e senadores que faziam esse tipo de discurso. E hoje eles aumentaram muito. Punir cem hoje é muito mais difícil do que teria sido punir um único há alguns anos”, declarou o historiador da UFMG. 

Exaltar a ditadura e torturadores nesse espaço democrático, para Moraes, “significa uma total subversão de valores e uma total ignorância”. “Beira a opção pela maldade, o endeusamento do enfrentamento, você achar que as armas são solução, que expressão de poder é solução. Existe um romantismo muito grande com relação a figuras de poder violento”, explicou o professor. 

Essa visão romantizada, segundo ele, acontece por “absoluta falta de informação” ou “deliberada maldade”. “Se a pessoa tem informação suficientemente histórica, ela vai perceber que ela está idealizando, romantizando, homenageando um monstro”, disparou, induzindo responsabilidade também à forma de uso das redes sociais, local em que “pensamentos preconceituosos e não embasados” são propagados com facilidade. 

“A gente está em uma época de volta do pensamento da terra plana. Onde já se viu imaginar que algum dia alguém iria em uma rede defender isso, perder o seu tempo? O pensamento com pouca reflexão sempre é mais obsessivo. Quando você se permite absorver mais as informações, você tem um tempo de digestão, de processamento e de ponderação. A pessoa que não tem paciência, que não quer refletir, ela não quer esses pontos de vista e rapidamente sentencia na cabeça uma versão e usa toda energia para fazer a divulgação dessa ideia obsessiva”, explicou Moraes.