Para chegar aos badalados segundo e terceiro andares do Mercado Novo, no centro de Belo Horizonte, o cliente a rapidamente pelo térreo, onde reinam os hortifrútis, e pelo primeiro, onde espalham-se corredores mais escuros e, em geral, menos movimentados. São gráficas, lojas de conserto de eletrodomésticos e sacolões que guardam histórias de décadas, desde muito antes de os pisos superiores serem redescobertos pela juventude belo-horizontina. O Mercado Novo completa 60 anos neste dezembro sob uma promessa de alguns de seus comerciantes mais antigos: eles vieram antes da onda gourmet e não pretendem tirar o pé dali mesmo com todas as transformações do espaço.
O torneiro Jairo Barbosa, de 67 anos, conta que flagra olhares curiosos para sua loja, que funciona há 50 anos no segundo andar do Mercado Novo. Propriedade dele, ela tem cerca de 10 m² e fica entre um estúdio de tatuagem com ares modernos (que oferece desenhos de capivaras da Pampulha de biquíni, por exemplo) e um bar especializado em shots que reúne filas de jovens à noite. Centenas de peças de motor e ferramentas enchem as paredes e pendem do teto da lojinha, e em nada lembram o comércio ao redor. “As pessoas se perguntam: como pode um negócio desse no meio dos bares? Mas não sou eu no meio dos bares, e sim eles do meu lado”, pondera ele. No fundo da loja, há uma latinha vazia de Xeque Mate, lembrança de dias em que ele compra um drink nos bares ao redor e cozinha os próprios tira-gostos no seu fogão.
No andar de baixo, a paisagem é menos gastronômica. Ele é dominado pelas gráficas — são 65 delas. No final de um corredor, uma placa iluminada anuncia “lembranças de luto”, ao lado de uma loja de fabricação e manutenção de máquinas de fazer algodão-doce. No interior, ficam três impressoras, um largo quadro com a imagem de Nossa Senhora e Jesus Cristo e, detrás da mesa de escritório, Ronaldo Bonfim. Com 70 anos, ele ou os últimos 34, 18 deles no Mercado, fazendo santinhos para velórios e missas de sétimo dia que estampam fotos dos falecidos e mensagens de conforto.
A ideia para o negócio surgiu quando ele precisou fazer santinhos para o sogro e não encontrou um serviço gráfico que aceitasse imprimir poucas dezenas de cartões. Seu dia a dia cuidando sozinho da loja dá espaço para pensar em temas metafísicos. “Não tenho medo de morrer. Eu tenho pavor. Você não se acostuma com a morte. As pessoas vêm aqui, sentam, choram e eu escuto”, diz. Mas ele também tem preocupações mais terrenas: “o Mercado precisa de limpeza e de alegrar o ambiente, pintar com um azul claro, um rosa. Tem gente que entra no segundo andar e fica abismada como é escuro”.
A visão da atual istração é o contrário. A ideia é preservar o máximo possível a aparência original do Mercado Novo, inaugurado em 1963. “Não vamos mudar a estética. Se a pessoa tem parede de alvenaria, por exemplo, terá que tirar para colocar porta de aço”, descreve o superintendente do Mercado Novo, Gabriel Filho. Para os novos empreendimentos, o padrão já é exigido, nos moldes do que foi inaugurado pela primeira leva de empreendimentos modernos no espaço, como a Cozinha Tupis e a Distribuidora Goitacazes.
No final de uma manhã de quarta-feira, o segundo andar do mercado, povoado por bares, estava vazio enquanto funcionários limpavam o chão e alguns restaurantes preparavam o almoço do dia. Já no primeiro piso, as lojas mantinham as portas abertas ao público. No térreo, no corredor dedicado ao hortifrúti, trabalhadores encerravam o expediente depois de uma madrugada ativos e, no corredor do varejo, dezenas de clientes circulavam entre lojas de queijos e as.
São universos que não conversam diretamente. O térreo tem uma istração própria, a Associação dos Comerciantes do Novo Mercado, e os demais andares são organizados por outra, independente. O superintendente do Mercado Novo, Gabriel Filho, que cuida dos andares superiores, defende que o local não está ando por uma gentrificação — isto é, quando novos empreendimentos expulsam os antigos.
“Acreditamos em uma homogeneização do Mercado. Demanda tempo, não tiramos pessoas que estão aqui, e vamos transformá-lo conforme forem saindo. Se a família acaba, se o negócio não se mantém, temos que ver o que fica”, diz. Muitos dos comerciantes que trabalham no local herdaram o negócio dos pais ou trabalham nele há décadas, com a perspectiva de que novas gerações assumam a empreitada.
A alta demanda por lojas no Mercado fez o aluguel, que há cerca de quatro anos girava em torno de R$ 500 por loja, triplicar. Por outro lado, alguns dos comerciantes mais antigos são donos de suas próprias unidades e, assim, protegem-se desta inflação. Os demais lidam com ela como podem. O produtor de santinhos de sétimo dia Ronaldo Bonfim, do começo da reportagem, por exemplo, mudou-se para a loja em frente à que ocupou por quase duas décadas no começo deste ano, após o proprietário aumentar o aluguel de R$ 800 para R$ 1.400. Agora, paga R$ 1.000, e não pretende sair do Mercado.
Os comerciantes com que a reportagem conversou foram unânimes em classificar que os novos bares e restaurantes que ocupam o espaço são caros, por isso não costumam frequentá-los. “Dá gente bonita, o nível é bom, mas os trens são caros. Para mim, fica puxado. Lá, eu vou gastar R$ 100. Com isso, saio duas vezes em outro lugar e gasto R$ 50”, resume uma delas.
A redescoberta do Mercado Novo pelas gerações mais jovens começou com o hoje encerrado Mercado das Borboletas, aberto em 2010, e ganhou a tração atual a partir de 2018, primeiro com bares e restaurantes. Agora, a curadoria do Mercado tenta atrair mais segmentos da economia criativa e se afastar da pecha de ser um espaço predominantemente gastronômico e noturno.
A ideia, diz o superintendente Gabriel Filho, é que o Mercado Novo seja um local onde as pessoas vão consumir serviços e produtos criativos e aproveitem para comer e beber, e não o contrário. Até porque para comportar mais restaurantes são necessárias reformas estruturais, pois o local não foi concebido originalmente para ter tantos estabelecimentos gastronômicos. “Precisamos de mais energia da Cemig para o bar fazer seu próprio gelo, por exemplo”, pontua Filho.
A aparência de obra em construção do Mercado Novo não é apenas estética. Oficialmente, ele nunca terminou de ser construído. Nos registros da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), consta como um edifício com “baixa parcial”, ou seja, somente parte do projeto, como as áreas comuns, está finalizada. Isto não impede, contudo, que ele funcione em conformidade com as leis municipais.
Até hoje, o Mercado também não possui o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB), documento que comprova todas as normas de segurança do espaço. À reportagem, a corporação atestou que ele tem sido fiscalizado. O terceiro pavimento está interditado para eventos atualmente, pois não tem saídas de emergências compatíveis com o público.
A história do Mercado Novo explica esse flerte com o mal-acabado. Ele foi concebido sobre um terreno onde antigamente estava um abrigo de bondes, inicialmente para receber lojistas do Mercado Central, que funcionava desde 1929 a poucos quarteirões dali. A construtora que assumiu a obra faliu e ela nunca foi concluída.
O Mercado Central floresceu como um dos principais pontos turísticos de Belo Horizonte e, por muito tempo, deixou o vizinho à sua sombra. Para alguns dos comerciantes do Mercado Novo que apostam em segmentos similares ao do Central, ainda resta um gostinho amargo.
“O Mercado Novo não cresceu muito, e hoje me arrependo de não ter ido para o Central, porque lá é mais organizado e muito mais valorizado. Mas estou satisfeito, já me sinto um vencedor aqui”, diz o comerciante de laticínios e produtos para cachorro-quente e hambúrguer Fabiano Gomes Rodrigues, de 77 anos, mais de 50 deles no térreo do Mercado Novo.
Com o trabalho no Mercado, ele criou os filhos, comprou uma casa e trouxe do interior para BH todos os seus irmãos. “Eu podia estar descansando hoje, mas não o ficar à toa. Meu forte é o comércio. Se eu fosse mau comerciante, não estaria aqui há tanto tempo”.
Quem vai ao Mercado Novo com os amigos para comer e beber no segundo e no terceiro andar sabe que o movimento se encerra por volta da meia-noite. No térreo, é quando a vida começa. Na madrugada, dezenas de caminhões chegam direto dos produtores da região metropolitana de Belo Horizonte carregados de legumes e verduras, que são descarregados por centenas de trabalhadores e enviados para sacolões e supermercados cidade afora.
Por volta das 10h, quando a reportagem encontrou o presidente da Associação dos Comerciantes do Novo Mercado, Nelson Luiz Caetano, ele ainda estava a algumas horas de encerrar o expediente, iniciado à 1h. Em uma sala apertada nos fundos de um corredor, organizava pedidos de sacolões espalhados por BH e atendia o telefone para negociar outras encomendas.
É uma rotina que começou há cinco décadas, quando ele tinha 13 anos e ia ao Mercado algumas madrugadas para ajudar o pai, que também trabalhava com hortifrúti. “Na primeira vez em que meu pai me trouxe, senti aquele cheiro mais gostoso, igual hoje quando alguém chega aqui de madrugada. Aquele cheiro de maçã, de fruta adoidado”, descreve. Mesmo de manhã, quando o trânsito está intenso nas ruas ao redor, o cheiro fresco de verduras é perceptível nos corredores.
Também um negócio que ou de pai para filho, a alguns metros está o bar Zé Luiz, batizado com o nome do dono original e, hoje comandado pelos irmãos Gilson Luiz Pereira, de 53 anos, e Luiz Otávio Pereira, de 52. Sob o olhar do pai, representado em uma fotografia no alto de uma prateleira, eles servem comida a madrugada inteira. Não só para os demais trabalhadores noturnos do mercado, como para boêmios que conhecem o local há anos e jovens que o conheceram nas recomendações de influencers de gastronomia no Instagram.
“Às três da madrugada, servimos feijoada, tropeiro, costela, frango com quiabo. Sempre foi assim. Mas uma hora já tem comida, sai muita porção, pão de queijo com linguiça. Saio daqui meio-dia e 15h eu durmo. Já perdi muita festa trabalhando”, conta Gilson, enquanto ele e o irmão lavam a louça da noite anterior.
Já Élio José Teixeira, de 53 anos, é a primeira geração de comerciantes do Mercado Novo da família. “Sou de Santa Maria de Suassuí. Vim para BH com 17 anos, fugindo de casa. Pai turco, mãe alemã, todo dia era levantar, moer cana, tirar leite, eu não aguentava. Vim e dormi na rodoviária. Andava pela rua Guaranis, pela Raul Soares, comprava banana e mexerica e vendia na rua”, rememora.
Até que começou a trabalhar no Mercado e, aos poucos, cresceu até ter sua própria loja, onde habitua os netos ao comércio. “Eu amo o Mercado Novo, ele é um pai e uma mãe para mim”, conclui.
Fotos de Flávio Tavares/O TEMPO