Desde o início dos anos 2000, o governo federal gasta bilhões de reais com Organizações Não Governamentais (ONGs) responsáveis por contratar profissionais de saúde para atender as comunidades indígenas, inclusive o povo Yanomami. Sozinha, a principal delas, a Missão Evangélica Caiuá, recebeu cerca de R$ 3 bilhões desde 2014, segundo o Portal da Transparência. Entre 2019 e 2023, foram R$ 900,3 milhões – R$ 182 milhões direcionados à saúde Yanomami, dos quais R$ 155 milhões foram gastos em quatro anos, segundo o presidente da organização, Geraldo Silveira Filho. Mesmo com uma cifra considerável, o dinheiro não se reverte em saúde na prática para os povos originários.
“É um dinheiro que não se traduz em saúde”, afirma Silveira Filho, que é reverendo da Igreja Presbiteriana do Bairro Belvedere, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, a quase 3.000 km de Roraima, epicentro da crise dos Yanomami. Todo o recurso disponibilizado pelo governo, explica ele, é direcionado ao pagamento de pessoal, contratado a partir de edital de seleção com prova.
“A Missão Caiuá não põe a mão em um centavo desse dinheiro, ele fica no Sistema de Convênios (Siconv). Somente com autorização do coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) a Missão Caiuá pode colocar despesa lá”, afirma o presidente da entidade.
A Missão Evangélica Caiuá foi fundada em 1928, pelo pastor norte-americano Albert Maxwell, e, desde então, garante prestar serviços de saúde a indígenas. Ela também mantém o Hospital Porta da Esperança, em Dourados (MS), sua cidade-sede, com atendimento público.
O modelo de convênio, em que o Ministério da Saúde firma um acordo com instituições filantrópicas para ter mão de obra, começou em 2000. Foi uma forma, avalia Geraldo Silveira Filho, de atrair mais profissionais para a saúde indígena, pois muitos concursados que avam nos processos seletivos do Sistema Único de Saúde (SUS) para atuar em regiões remotas pediam transferência para áreas mais urbanas após um tempo de experiência. As organizações contratam apenas os profissionais, porém não são responsáveis por adquirir medicamentos, por exemplo. Essa atribuição é do Ministério da Saúde.
- Apenas a Missão Caiuá tem cerca de 4,7 mil funcionários, 803 para atender exclusivamente os Yanomami.
- O edital mais recente, de 2022, previa salários que variavam de R$ 1.692,62 para assistente de saúde bucal a R$ 10.719,98 para geólogos e engenheiros, por 44 horas semanais.
- O salário de médico, com jornada de 22 horas semanais, é de R$ 8.815,77
Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e com experiência em atendimento médico aos Yanomami, Paulo Basta critica o modelo atual de contratação de mão de obra. “Ele faz parte da crise em que chegamos. Há certa acomodação do sistema e das organizações que recebem todo esse recurso. É um dos gargalos, mas não o único. O número de profissionais é insuficiente e existe uma grande rotatividade deles, porque o problema é estrutural, devido à infraestrutura precária no território”, avalia.
“Com o tempo, ainda nos primeiros mandatos de Lula, houve uma caça às bruxas e auditorias em ONGs, e muitas quebraram, mudaram CNPJs, e isso fez com o que governo concentrasse os convênios em poucas organizações, como a Caiuá, que ganhou protagonismo que foi só aumentando ao longo da primeira década dos anos 2000”, comenta o pesquisador. A ONG chegou a ser responsável pela contratação de pessoal de 19 dos 34 DSEIs existentes. Em 2018, na renovação dos convênios, reduzir o número para nove e, agora, diz planejar diminuir ainda mais, em meio às dificuldades para trabalhar.
Paulo Basta defende a abertura de concursos públicos atrativos para manter profissionais no atendimento indígena. “Se não houver infraestrutura de trabalho e aumento de equipe, não adianta ter servidor público e jogá-lo nesse caos, porque vai continuar ruim. O ambiente de trabalho é absolutamente precário, são postos de saúde que são casebres caindo ao pedaços”, diz.
Há cerca de 80 postos de trabalho vagos apenas no território Yanomami, diz Silveira Filho, da Missão Caiuá. “Estamos defasados e precisamos de mais médicos e enfermeiros. Alguns profissionais, com a dificuldade de ir às aldeias e o risco que têm, pedem demissão”, justifica.
O TEMPO procurou em 3 de fevereiro o Ministério da Saúde para entender o convênio com a Missão Caiuá, entidade de cunho religioso ligada à Igreja Presbiteriana do Brasil. Uma das questões era compreender o que a credenciou junto à Pasta para prestar serviço de seleção e alocação de mão de obra na área de saúde em comunidades indígenas. O ministério se limitou a informar que “mantém Termo de Convênio com a Missão Caiuá, para complementar atividades da Sesai junto aos povos indígenas, no qual estão inclusos a contratação das equipes de saúde, apoio ao controle social, apoio às práticas integrativas e à educação permanente”. Informou que desde 2011 reou mais de R$ 4,2 bilhões à entidade. Questionado sobre providências tomadas frente a denúncias de que desde 2004 há desmonte gradual da DSEI Yanomami, o ministério se calou.