“Eu não garanto até amanhã”, desabafa a médica Gabriela Mafra sobre a vida do bebê de 2 meses que acabara de chegar com um quadro grave de desnutrição ao polo de saúde da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em Surucucu, no interior da Terra Indígena Yanomami em Roraima. Sem vagas no avião da empresa terceirizada contratada pelo Estado, a profissional do Programa Mais Médicos fez um apelo desesperado pela vida da criança para que pudesse embarcar com a família em uma das aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB) em direção ao hospital da capital, Boa Vista.
Este é um exemplo cruel e recorrente da urgência do socorro necessário a todo o povo Yanomami, que vive desde a década de 70 uma tragédia que custou a vida de pelo menos 538 crianças indígenas nos últimos quatro anos e que, no dia 20 de janeiro, finalmente viu decretada situação de Emergência de Saúde Pública.
“Havia aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) pousados no aeródromo de Surucucu, e foi solicitada a remoção (resgate) do paciente. Graças a Deus, deu tudo certo”, disse o médico do Exército Lucas Eduardo Thomaz Marquez, que ajudou a obter o sinal verde da FAB para o transporte. Os dois médicos se apressaram para que a família chegasse até a pista localizada em frente ao 4º Pelotão Especial de Fronteira, a dez minutos de caminhada da Sesai. No entanto, não era só o bebê que estava doente. A mãe dele lutava para ficar em pé e com os olhos abertos – ela aparentava um quadro avançado de malária, doença que fustiga grande parte de seu povo. Dos 11.530 casos de malária em todo o país no ano ado, 9,3% foram em território Yanomami, de acordo com dados do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica (Sivep), do Ministério da Saúde.
Era uma corrida pela sobrevivência. Um dos médicos segurava o soro da criança, enquanto o outro gritava pela mãe do garotinho em meio aos mais de cem indígenas que se recuperavam ou aguardavam transferência na unidade de saúde. Para chegar rapidamente até a pista e decolar antes do pôr do sol, a médica correu com o bebê no colo, enquanto o médico do Exército se apressou ao lado dela segurando o soro.
No início da pista de decolagem, os dois conseguiram uma carona em uma espécie de moto acoplada a uma carroceria – usada no transporte de alimentos, entre outros – e conseguiram chegar a tempo da decolagem. Até Boa Vista, são 354 km. O tempo de viagem é de aproximadamente uma hora e 40 minutos, dependendo da aeronave.
Nada é fácil para quem luta contra o tempo para salvar os Yanomami. Júnior Yanomani, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, é uma das referências que dão confiança aos indígenas resgatados em aldeias mais distantes para que superem o medo de entrar em uma aeronave ou de se separar da família. Ele acompanha os resgates e facilita o trabalho dos profissionais de saúde, já que fala a língua do seu povo e o português.
“É triste, dói bastante ver meu povo Yanomami nesse estado. O governo federal não olhou para nós, a gente queria somente saúde, a gente só queria segurança para as comunidades, porque a Constituição Federal garante todo tipo de assistência, a gente não estava pedindo favor”, afirmou, enquanto trabalhava na Sesai, naquele 1º de fevereiro.
Minutos antes, a médica havia atendido um idoso que também chegou à Sesai de helicóptero, de alguma aldeia Yanomami da região, e saiu carregado da aeronave “com a pele ‘saindo’ do corpo”. Em meia hora de permanência no local, acompanhou, em 1º de fevereiro, três resgates complexos sendo realizados no polo da Sesai – unidade que atende aproximadamente 14 mil indígenas Yanomami (de 180 aldeias). Por dia, desde o fim de janeiro, uma média de oito pessoas (de todas as idades) precisam ser transferidas de Surucucu para Boa Vista.
No olhar, eles carregam a tristeza e a saudade de casa, além do medo de precisar lidar com o “homem branco”. Muitos se escondem das câmeras, mas, na ausência delas, eles ainda conseguem abrir um sorriso cansado para quem chega oferecendo um pouco de afeto.
A solução para a crise humanitária ainda não está bem desenhada, já que novos projetos de combate ao garimpo e expansão dos polos de saúde para aldeias distantes ainda estão sendo construídos.
O respiro no meio do sufoco é a união de voluntários, Forças Armadas, médicos, profissionais de saúde e lideranças indígenas para “estancar” o sangramento. “Essa união de forças do governo federal é uma esperança para nós, é uma felicidade. Fico feliz porque minhas comunidades estão sendo atendidas, a gente está salvando essas crianças”, acrescenta Júnior Yanomami.