Como a fome mata?

Nutrólogo explica como ocorre o processo de desnutrição severa no organismo 6e326x

São mais de 5 mil crianças no território indígena com casos confirmados, atesta levantamento recente do Ministério da Saúde 675n4x

Por Rodrigo Rodrigues e Lucas Morais
Publicado em 14 de fevereiro de 2023 | 23:30
 
 
Foto: Fred Magno/ O TEMPO Foto: Fred Magno/ O Tempo

As costelas humanas têm como função precípua resguardar órgãos vitais acomodados na caixa torácica. Ali, por exemplo, está a bater o coração. Quando elas se tornam protagonistas de flagrantes como os dos índios Yanomami, revelados ao Brasil recentemente, os ossos expostos em corpos débeis e esquálidos apontam para direção oposta à da proteção. As imagens que correram o mundo se assemelham muito mais a um clamor silente por socorro, denunciando o estômago vazio de crianças, adultos e idosos. 


 

“Conhecendo a nossa realidade agora, gostaria que vocês nos ajudassem. Quero pedir que vocês nos ajudem”, implora Matheus Sanöma, presidente da Associação Indígena Ipasali Sanuwa, sediada em Boa Vista. O lamento do líder indígena, de 53 anos, é um traço da tragédia alimentar que se abateu sobre a maior reserva de povos originários do Brasil, com mais de 9,6 milhões de hectares. Calamidade intrinsecamente ligada à investida agressiva do garimpo ilegal na região encravada entre os Estados de Roraima e Amazonas. No local, 31.007 indígenas, distribuídos em 384 aldeias, aram a disputar espaço com aproximadamente 20 mil garimpeiros. O resultado? Contaminação do solo e da água, por meio da presença insalubre do mercúrio utilizado na busca pelo ouro e por outros minerais, resultando a morte de rios e peixes, além de afugentar animais que faziam parte daquele bioma. No rastro da destruição, doenças evitáveis e o perecimento por inanição de uma comunidade acostumada a sobreviver da pesca, da caça e da roça. 

 

Privados da alimentação básica, os Yanomami tornaram-se testemunhas da própria morte, tentando resistir ao lento, doloroso e implacável definhar de seus corpos. “Saíamos para caçar, pescar, bater timbó (pesca artesanal) nos igarapés e tirar a alimentação. Com o ar do tempo, começaram a chegar os não índios para nossa região. Hoje, estamos ando por essa situação que todos estão vendo”, queixa-se Matheus Sanöma. 

 

Em levantamento recente, o Ministério da Saúde detectou casos de desnutrição grave em mais de 5.000 crianças, bem como 538 de óbitos infantis nos últimos quatro anos (2019 a 2022). A crise alimentar, porém, acomete outras faixas etárias. “Quando uma pessoa não se alimenta, ela fica desnutrida e vai desenvolver o processo de inanição. Os sintomas característicos são fraqueza, anemia, queda de cabelo, unhas quebradiças e redução do tônus muscular, entre outros. Ocorre, ainda, sonolência, apatia, indisposição e, evidentemente, a redução da capacidade de defesa imunológica”, explica Durval Ribas Filho, nutrólogo, endocrinologista e presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran). O especialista destaca que, sem alimentação adequada, outros problemas surgem com o ar do tempo. O sistema imunológico fica “deprimido”, e, consequentemente, há maior propensão ao desenvolvimento de doenças, principalmente as infecciosas. “Uma gripe, por exemplo, pode se tornar pneumonia com facilidade”, compara. 

 

“Não há dúvida de que as populações indígenas desnutridas de forma crônica terão predisposição maior ao desenvolvimento de doenças.” Durval Ribas Filho, nutrólogo

 

Mais massa corporal, mais vida 2p6v

 

G O processo de desnutrição se instala quando deixa de haver equilíbrio no organismo: a energia que entra é menor do que a que sai, provocando déficit calórico crônico. “Com o ar do tempo, o balanço negativo vai provocar a queima dos depósitos de glicose. Na sequência, serão gastos os de gordura e, depois, de massa magra, os músculos. Aí, começa o processo de desnutrição energética”, esclarece o nutrólogo Durval Ribas, presidente Associação Brasileira de Nutrologia (Abran). Segundo ele, será a massa corporal a determinar quanto tempo é possível se manter vivo sem alimentação.

 

“Se a pessoa for obesa, terá sobrevida maior. Portanto, esse tempo em que o ser humano a é relativo, vai depender das condições de cada indivíduo”, sustenta. O médico conta que um dos poucos trabalhos sobre quanto o corpo resiste à falta de alimentos é da década de 1980. “O grupo ativista IRA (sigla em inglês para Exército Republicano Irlandês) fez jejum em protesto pela libertação de presos pelo governo da Inglaterra. Eles aram o jejum por cerca de 60 dias. Tratava-se, porém, de um jejum relativo, em pessoas com boa condição de saúde e bom depósito de gordura, ingerindo líquido, água, soro fisiológico”.