Quando o padrão pode matar
E, em uma sociedade racista, o que é visto como “belo”? E o que é o “feio”? “Ah, gosto não se discute”, dizem aqueles que vivem sem questionar o mundo.

Os riscos associados à realização de procedimentos estéticos voltaram a pautar os assuntos no Brasil nos últimos dias. A morte de um empresário, de apenas 27 anos, após um peeling de fenol (aplicação de ácido na pele para redução de manchas e cicatrizes), abriu espaço para vários questionamentos. As perguntas aram por situações técnicas, como locais e profissionais indicados ou quando buscar esses serviços, até questões mais amplas, como a dificuldade de aceitação do envelhecimento e a busca de um padrão que tem deixado uma geração com rostos quase idênticos. Porém, como tudo na vida, dá para explorar outro viés. E já pergunto a você, logo na abertura do texto, sem muitas voltas: qual o impacto do racismo estrutural nessa onda de procedimentos estéticos?
“Lá vem ela colocando racismo no assunto”, alguém pode dizer. Mas a verdade é que absolutamente tudo que a pela busca de padrão necessariamente vai reforçar a ideia de um perfil socialmente visto como ideal e um colocado como o não desejável. E, em uma sociedade racista, o que é visto como “belo”? E o que é o “feio”? “Ah, gosto não se discute”, dizem aqueles que vivem sem questionar o mundo. Mas o que seria o gosto? Nascemos pensando que rosto retangular é o mais bonito e que bocas com lábios carnudos, de preferência não naturais, são sinônimos de beleza? Ou alguém, em algum momento, disse isso e, de tanto ouvirem, as pessoas foram se convencendo disso? E não só se convencendo, mas se colocando em risco para conseguir se aceitar?
Em BH, uma mulher de 31 anos morreu porque, na expectativa de emagrecer antes do casamento, colocou um balão gástrico e não resistiu à cirurgia. Ela pagou com a própria vida. Foi erro do médico (que está sendo acusado pela família dela de negligência)? Não sei. Talvez ele tenha uma parcela de responsabilidade, mas isso a Justiça vai avaliar, e não eu. A vítima teve culpa ao procurar um procedimento sem indicação? Óbvio que não, afinal ela agiu para se sentir confortável em uma sociedade que impõe essas tais “regras” de beleza às pessoas. Se for para apontar algum carrasco, eu diria que somos todos nós. Quando uma pessoa perde a vida tentando se enquadrar em um perfil não questionado pela maioria da população, isso revela os valores construídos coletivamente.
Sim, eu sei que estou falando sobre gordofobia nesse último caso e o tema aqui seria racismo. Mas isso é porque a nossa capacidade social de odiar é tão grande que sobram estereótipos colocados na “caixinha da inconformidade”. Não podemos ter rugas, marcas da vida, manchas na pele e cabelos naturais sem ar por críticas. E não podemos ser negros em paz. Várias vezes em que me encontrei com algum profissional de estética, saí com alguma “indicação” para “melhorar minha aparência”. Já ouvi de tudo: alisamento nos fios, preenchimento nas olheiras, ajuste do rosto “arredondado demais” e até bronzeamento artificial, para ficar com marca de “queimada pelo sol”. Na cabeça do indivíduo que oferece bronzeamento a uma pessoa negra, ele está ofertando uma solução perfeita: afinal, se eu tiver marca de biquíni, vai parecer que sou menos preta e, consequentemente, serei mais aceita pelo padrão. É porque essa mesma população que paga caro para ter a pele mais escura não vê beleza nas peles que nasceram assim. Um paradoxo que eu não vou entender nunca.
Vejam bem, não estou dizendo que não tenha nada no meu corpo que não me incomode e negando a necessidade de todos os procedimentos disponíveis. O que estou questionando é o fato de pessoas das quais não pedi a opinião se sentirem à vontade para me diagnosticar como necessitada de alguma coisa do nada. E, quando falo “do nada”, é porque não foram diagnósticos em consultórios. Foram pessoas, encontradas em contextos diversos, que me viram e disseram a mim: “Você tem tal coisa”. Além de ser mal-educado, é uma expressão de racismo. Espero que as pessoas possam entender que há belezas diferentes e que está tudo bem em ter o “rosto redondo”, o cabelo natural e a pele negra. Isso não precisa ser tratado como uma patologia. Quando assim pensarmos coletivamente, teremos menos mortes por procedimentos inadequados e sem indicação.