e mais publicações de Tatiana Lagôa

Tatiana Lagôa

Tatiana Lagôa é jornalista e integra a lista dos 550 jornalistas mais premiados do Brasil. Atualmente, é editora de Cidades, colunista responsável pela Coluna RepresentAtividade e integrante do Programa Interessa, da FM O TEMPO.

REPRESENTATIVIDADE

Bebê reborn é privilégio branco

Agora fale a verdade: não tinha UM negro nessa cena para contar história. Ou, se tinha, era a minoria absoluta.

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 23 de maio de 2025 | 06:00

Um parque cheio de árvores, em um dia qualquer, com várias mulheres compartilhando o maternar. Tente recriar essa cena na sua cabeça. Agora acrescenta a informação que esses bebês não são reais, são bonecos. Sim, estamos falando sobre os encontros de mães de bebês reborn. Agora coloque outro elemento na imagem: no parquinho do local, crianças criticam a CLT entre uma descida no escorregador e outra. Imaginou? Agora fale a verdade: não tinha UM negro nessa cena para contar história. Ou, se tinha, era a minoria absoluta. Mas você sabe o motivo? 

Eu sei que em um primeiro momento parecem ser assuntos sem conexão entre si. No fundo são mesmo. Mas, para esse recorte especificamente, a que quero chamar a atenção, eles têm convergência, e ela pode ser resumida em uma palavra: privilégio. Eu também sei que, quanto mais privilegiada é uma pessoa, mais ela tem antipatia do termo “privilégio” e menos ela quer falar sobre ele. E a repetição da palavra aqui foi proposital, é para fixar bem na cabeça de vocês. 

Mas vamos a alguns dados: crianças negras representam 62,7% da mão de obra infantil no país. Quando o assunto é trabalho doméstico precoce, sobe para 73,5%, sendo que mais de 90% são meninas. O direito à infância e ao – de novo a palavra odiada – privilégio do brincar é um marcador econômico e social. Uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas mostra que, de 2012 a 2022, o número de mães solo no Brasil subiu 1,7 milhão. Noventa por cento delas são negras. O mesmo estudo mostra menor escolaridade por parte de mulheres negras e piores remunerações, mesmo nas mesmas posições. 

Com esse histórico aí, eu proponho o exercício de raciocínio: essas mulheres que estão tentando sobreviver, manter os filhos alimentados e seguros, sem rede de apoio, que trabalham de dia, cuidam das casas à noite e fazem comida de madrugada, vão ter tempo para cuidar de boneca? Vão sobrar agenda e força para ir à pracinha cuidar de bebê sintético? Aliás, muitas delas se culpam diariamente por não ter tempo de levar os próprios filhos – de carne, osso e sonhos – para brincar nos parques da cidade.

Lembrando que estamos em um país onde mulheres negras foram abusadas e escravizadas e que agora lidam com a baixa escolaridade e o subemprego. Então, falar em comprar bonecas de até R$ 8.000 e ainda gastar com o enxoval delas é uma realidade que beira o absurdo, dependendo do contexto em que isso for citado. 

E os ataques à CLT? Contextualizando, virou moda entre estudantes se referir aos colegas de CLT como uma espécie de crítica. Isso pode até fazer sentido para aquelas pessoas que nascem em contextos de oportunidades fartas. Mas, quando pensamos que as pessoas negras estão lutando para ter igualdade de salários e oportunidades no mercado, eu posso dizer que existem muitas, mas muitas mesmo, sonhando em ter carteira assinada e os benefícios garantidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Segundo dados do Dieese, uma de cada seis mulheres negras trabalha nos cuidados de casas e filhos de terceiros. E essa categoria de profissionais só teve o a direitos básicos, como férias remuneradas, 13º salário, auxílio-doença, salário-maternidade, entre outros, após a chamada “PEC das Domésticas”, em 2013. Isso significa que, há pouco mais de dez anos, essas mulheres, em sua maioria negras, sequer tinham os tais direitos consolidados, criticados pela juventude.

Sabe o que isso significa? Que não deu tempo de elas se cansarem da CLT. Para a população negra, “ser CLT”, popularmente falando, significa ter o a direitos básicos para não morrer de fome. Então, que me desculpem os críticos, isso aí também é modinha e privilégio de branco.