CINEMA

‘Um Completo Desconhecido’: cinebiografia de Bob Dylan acerta ao preservar sua aura enigmática

Longa de James Mangold, protagonizado por Timothée Chalamet, concorre a oito categorias no Oscar; filme chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira 

Por Alex Bessas
Publicado em 27 de fevereiro de 2025 | 08:37

Em dezembro de 2016, quando se tornava o primeiro e único músico vencedor de um Prêmio Nobel de Literatura, “por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”, Bob Dylan simplesmente não foi à cerimônia, onde foi representado por Patti Smith, sua amiga. A atitude pode soar estranha aos menos familiarizados, mas, é certo, não surpreende os que já acompanhavam sua trajetória.

Quase folclórica, a história é alegórica da personalidade ao mesmo tempo exuberante e discreta do artista, em que aparentes conflitos, talvez até incoerências, parecem conviver em paz. Uma característica, uma idiossincrasia, que o longa “Um Completo Desconhecido” soube capturar, para a sorte dos fãs e de qualquer outro espectador que aceite a carona na garupa desse “ilustre desconhecido”, mas para o azar de quem busca, em uma cinebiografia, respostas fáceis e prontas: elas não estão lá.

No filme do diretor James Mangold, protagonizado por um Timothée Chalamet entregue, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (27), o foco é a gênese de Bob Dylan e, por isso, pouco importa a vida pregressa de Robert Zimmerman – nome de batismo do músico. O filme não usa recursos como flashbacks ou mesmo relatos sobre o ado do personagem. A relação dele com a família, a infância ou mesmo a origem do interesse pela música e o despertar do talento tampouco aparecem em cena.

Surpreendentemente, nada disso faz falta ao que propõe a obra, que soma oito indicações ao Oscar e emprestou algum frescor a um tipo de cinema que andava desgastado, com uma sequência decepcionante de cinebiografias de grandes nomes da música – caso, recentemente, dos filmes “Bob Marley: One Love” e “Back to Black”, sobre Amy Winehouse, ambos de 2024.

E o que propõe a obra? De alguma maneira, a resposta parece estar no livro “Bob Dylan: A liberdade que canta” (2018), uma espécie de “biografia filosófica” do artista, escrita pelo filósofo, sociólogo e psicanalista brasileiro Daniel Lins. O volume, como o filme, mesmo tendo como matéria-prima a realidade concreta, parece se ocupar mais em construir um retrato daquilo que é intangível, registrando o jeito manhoso como Dylan sacode a existência, exigindo muito mais do que ela se limita a oferecer, “retirando-a do marasmo, do sono profundo ou do desmaio do desejo de nada mais desejar”, como escreve o autor.

Bob Dylan’s Dream

Em “Um Completo Desconhecido”, baseado na biografia “Dylan Goes Eletric!” (2015), de Elijah Wald,  o ponto de partida é o ano de 1961, quando Bob Dylan, aos 19 anos, chega a Nova York movido pelo sonho de conhecer um ídolo: a lenda do folk Woody Guthrie, vivido por Scoot McNairy, que àquela altura, já estava recluso, internado em um hospital para o tratamento de uma doença neurodegenerativa.

Em um contexto social e político marcado pela paranoia da Guerra Fria, que levou à perseguição de inimigos imaginários, entre os quais alguns artistas, chamados de “subversivos”, Guthrie, um compositor de músicas de protestos, está sempre acompanhado do amigo Pete Seeger, personagem Edward Norton, que, também músico, é figura-chave do movimento de retomada do folk nos Estados Unidos.

Por isso, ao conhecer Guthrie, Dylan acaba “adotado” por Seeger, que, impactado pelo talento e vendo potencial artístico no rapaz, lhe oferece abrigo, levando-o para casa, e a a trabalhar para que ele seja descoberto pela cena musical da cidade.

Em uma espiral, ele vai de um “padrinho” informal a um empresário profissional, dos shows em bares aos estúdios e festivais, de um completo desconhecido a alguém que troca correspondências com músicos que ira – como Johnny Cash, que também teve uma cinebiografia rodada por Mangold, o filme “Johnny e June”, de 2005.

Cena da cinebiografia de Bob Dylan

Portanto, a primeira metade do longa é marcada por portas que, sequencialmente, se abrem ao músico. Caminhos abertos também no amor, com Dylan iniciando relações com a artista visual e ativista Suze Rotolo, interpretada por Elle Fanning, que no filme ganha o pseudônimo Sylvie Russo, e, simultaneamente, com Joan Baez, duas mulheres que exercem influência sobre o artista.

Like a Rolling Stone

Na segunda metade da obra, que se a no ano de 1965, no que parece a decisão menos acertada da montagem, a história segue um fluxo acelerado, abrindo mão de todo investimento em ambientação feito até ali.

Bob Dylan, então, surge já repaginado: embora os cabelos sigam desgrenhados e os hábitos notívagos de composição permaneçam, as roupas já estão mais alinhadas e os óculos escuros, uma constante no novo visual, am a mascarar o olhar “angelical”, anteriormente destacado pela crítica – e esta não é a única característica que o músico parece renegar a partir de então.

Com uma carreira meteórica, o jovem músico de Minnesota já é, àquela altura, a voz do folk nos Estados Unidos. Mas o título e a fama pouco lhe apetecem, de maneira que, acossado pelo sucesso e refém da condição de celebridade, o músico se rebela.

Apesar do deslocamento e frustração, o artista segue preso aos antigos ciclos, inclusive amorosos, insistindo no triângulo amoroso que envolveu Suze (Sylvie, no filme) e Joan Baez. Neste quesito, em mais um acerto da cinebiografia, Dylan não é tratado como isento de falhas. Ao contrário: o personagem muitas vezes soa como um babaca insensível, sobretudo na relação com a cantora, com a qual protagonizou não somente um romance como também realizou parcerias musicais.

É por vias sinuosas que Bob Dylan vai dinamitando essas estruturas e provocando que algumas das tantas portas abertas até ali fossem fechadas.

I Shall Be Free

A montagem é hábil ao manejar essa sequência de desfechos, que contrariam a vontade do protagonista, como espécie de preâmbulo para uma rejeição em maior escala, em uma das principais sequências da obra: quando Dylan pluga sua guitarra elétrica em um amplificador e, com sua banda, canta “Maggie’s Farm”, desafiando a plateia e os produtores do Newport Folk Festival, evento dedicado ao folk, que, para aquela audiência, não deveria se render aos instrumentos elétricos – típicos de gêneros que esse público considerava menor, como o rock’n’roll. Dobrando a aposta, o grupo seguiu com “Like a Rolling Stone”, que se tornou um clássico, mas, à época, soou como heresia.

A cena, recriada no filme, é famosa por ter provocado a ira de um público de cerca de 15 mil pessoas, que reagiu com vaias monumentais. Os organizadores, por sua vez, também revoltados, tentaram interromper a apresentação – mesmo que, para isso, precisassem cortar os fios de energia com um machado. 

De imediato, essa errática e afrontosa defesa da própria independência resulta em abatimento, com um Dylan que sente, pela primeira vez, a ressaca da rejeição. O epílogo, porém, como sugere Joan Baez na obra, mostra que a rebeldia levou à liberdade, permitindo que o “Bardo de Minnesota” lançasse, naquele mesmo 1965, “Bringing It All Back Home”, disco que, 60 anos depois, permanece nas listas de mais influentes da música.