DEBATE

Antes sinônimo de estabilidade e segurança, CLT vira meme e motivo de chacota

Série de episódios que transformam a sigla referente a ter uma carteira assinada em ofensa expõem um novo cenário das relações de trabalho

Por Raphael Vidigal Aroeira
Atualizado em 15 de maio de 2025 | 08:46

Matriculada numa escola privada do Maranhão em razão da política de cotas, uma criança negra de 9 anos de idade ou a ser perseguida e hostilizada pelos colegas, que, ao fim, o apelidaram de “CLT”, em alusão à Consolidação das Leis Trabalhistas, promulgada em 1943 no governo de Getúlio Vargas.

Em janeiro, a influenciadora Fabiana Sobrinho divulgou um vídeo no TikTok em que mostra as opiniões negativas de sua filha de doze anos sobre “o que significa ter uma carteira assinada: andar de ônibus todo dia, muita gente, chefe, pessoas mandando”, afirma a garota. Na internet, o termo “CLT”, antes sinônimo de estabilidade e conquista, virou um meme de chacota.

 

 

Advogada trabalhista e mestra em Direito do Trabalho pela PUC-Minas, Marcella Araújo aponta que “o fenômeno tem origem na Reforma Trabalhista sancionada durante o mandato de Michel Temer, em 2017, que, ao prometer flexibilização e melhora na autonomia do trabalhador nas relações de emprego, promoveu uma generalizada precarização no mercado, aumentando a informalidade e diminuindo os níveis de proteção social”.

Diante desse cenário, uma pesquisa divulgada pelo Ministério do Trabalho revela que os baixos salários são citados por 36% dos jovens entre 18 a 24 anos para pedirem o desligamento de um trabalho formal, assim como a falta de flexibilidade na jornada corresponde a 20% do descontentamento, enquanto o adoecimento mental, provocado pelo estresse, atinge 26% das pessoas na faixa etária.

Logo, “embora ilusório e parcial, o discurso do empreendedorismo generalizado que ou a vigorar com força tanto na sociedade quanto nas redes sociais estaria calcado em experiências concretas, resultando no atual desprezo à CLT”, diz Marcella. Mentora em liderança e estratégia empresarial, Leila Said concorda que “a segurança associada a ter uma carteira de trabalho assinada se desfez, e a nova geração vê a CLT como um lugar de muitas amarras”.

“Ela não enxerga mais os benefícios da geração anterior. O que eles veem é a falta de liberdade, flexibilidade, um ambiente muitas vezes tóxico, onde você é obrigado a aturar uma liderança nem sempre positiva. A nova geração busca outro tipo de relação para validar o ambiente de trabalho”, conta. No entanto, as frequentes greves de trabalhadores autônomos, como os contratados por aplicativos de entrega, têm deixado à mostra os abismos e vácuos dessa realidade.  

Nova visão

No atual contexto das relações de trabalho, a CLT não estaria mais “suprindo necessidades básicas das pessoas, algo que a discussão em torno da escala conhecida como 6x1, em que o empregado trabalha seis dias na semana para ter direito a uma folga, expôs com intensidade”, reforça Marcella.

“A atual geração tem essa nova visão da relação com o trabalho, onde ela busca uma valorização da qualidade de vida, do tempo de descanso, da formação de uma identidade. Por exemplo, em viagens que trazem um crescimento cultural, esse aprendizado. Então esse tempo, essa flexibilidade, é fundamental para as pessoas jovens”, corrobora Leila.

Ela afirma que muitas empresas “pararam no ado e não se adaptaram às transformações contemporâneas” em um mundo pós-pandemia e de acelerada mudança tecnológica que propicia, cada vez mais, trabalhos à distância, feita a ressalva de que, em muitos casos, essa aparente flexibilidade se reverte numa jornada interminável para os empregados, sem horários determinados, pausas ou folgas.

“Muitas empresas mantêm esse modelo de negócio em que não prevalece a liberdade de expressão e a mobilidade das atividades das pessoas não é valorizada. Muitas vezes a pessoa fica anos realizando a mesma tarefa dentro da empresa, e a nova geração não busca isso”, sustenta Leila, abordando uma diversificação dos interesses.

Por exemplo, a “vontade de investir em cursos, se dedicar ao estudo de outros conhecimentos, arriscar uma nova habilidade”, são possibilidades cada vez mais valorizadas para a nova geração, ao contrário de outros momentos em que a especialização e a repetição de um modelo se consagrou como sinônimo de segurança, hoje substituída pela mudança como valor primordial da nova geração.

Nesse sentido, Leila acredita que é preciso haver uma “mudança de mentalidade das lideranças”. “Os líderes precisam repensar a posição de liderança. Acredito em atrair talentos, mas retê-los é cada vez mais difícil. As pessoas estão em muito mais movimento do que antes, é quase impossível segurá-las num só lugar atualmente”, diz.

Perdas e ganhos

Para Leila, a “recompensa financeira já não basta para ‘dar um match’ na relação com o trabalho que esses jovens buscam”, diz, utilizando um termo das plataformas de relacionamento digital. “Há muito tempo, o desenvolvimento de pessoas na organização precisa estar mais atrelado aos objetivos do contratado do que somente aos objetivos da empresa”, sublinha a especialista.

“O conhecimento fala sobre a individualidade, mas as pessoas não conseguem trabalhar individualmente. Hoje, nós estamos num contexto de coletividade, de colaboração e cocriação. Então, é importante que haja esse ambiente de partilha para que essa geração se sinta à vontade”, detalha Leila, que se diz otimista quanto aos próximos os dessa relação.

Na opinião da especialista, a comunicação tem se destacado como aspecto decisivo. “A partir desta habilidade, a gente desenvolve as demais. Manter uma comunicação clara, assertiva, incentivadora, não-violenta, ajuda muito nessa relação, em que o papel de pais, líderes e educadores também vai ser fundamental”, preconiza.

Segundo ela, as mudanças no mundo do trabalho estão em consonância com um contexto geral. “O mundo do trabalho também vai trazer negócios mais ágeis e diversos, ampliando as perspectivas, com vários profissionais de diferentes linhas atendendo ao mesmo cargo”, analisa Leila, que, no lugar da falta de responsabilidade entre os jovens denunciada por alguns, vê maturidade. “Eles estão mais criativos e inovadores”, afirma.

Mudança de valores e perspectiva

Mentora em liderança e estratégia empresarial, Leila Said não tem dúvidas. O que antes se entendia como “uma questão de segurança” relacionada à carteira de trabalho assinada, como décimo terceiro salário, fundo de garantia e outras proteções sociais “funcionava em outro contexto”.

“Algumas pessoas estão percebendo que, mesmo com esses direitos básicos, talvez não haja mais uma compensação do bem-estar, da saúde e inteligência emocional, do clima produtivo”, aponta. Essas pessoas estariam buscando, então, “outros benefícios”.

“Vale todo um debate, mas as pessoas aram a se sentir cada vez mais aprisionadas à CLT por conta da necessidade financeira, e hoje estão mirando outros caminhos”, destaca Leila. Ela acredita que a adesão ao empreendedorismo aumentou “o conhecimento em finanças e planejamento” entre os jovens da nova geração.

“Eles não querem uma carteira, eles querem contratos. Porque isso tem a ver com a flexibilidade que eles buscam, com o tipo de relacionamento que eles acreditam”, constata. Ativar o talento das pessoas dentro das empresas, para que elas tenham “liberdade de criar”, seria uma demanda urgente na visão de Leila. “Isso se integra ao movimento contemporâneo no qual as pessoas depositam a sua esperança”.