O poeta Manoel de Barros conseguia como ninguém reconhecer beleza nas coisas mais simples da vida. “Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. / Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas)”, escreveu no livro “Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo” (2001).
Seus versos demonstram que o cuiabano tinha “abundância de ser feliz” ao prezar os “insetos mais que aviões” e se emocionar com “velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.” Mas nem sempre conseguimos olhar para momentos pequenos e reconhecê-los como felizes – por mais que eles sejam e só descubramos isso depois.
E a partir dessas constatações, é natural surgirem sentimentos de tristeza ou frustração. “Poderia ter vivido aquilo com mais intensidade”, nos pegamos pensando com frequência. Essa dificuldade em reconhecer um momento especial enquanto está acontecendo pode ser explicada por conceitos que envolvem atenção, cognição e esquemas mentais.
“O primeiro conceito diz respeito ao foco negativo, no qual as pessoas se preocupam constantemente com futuro e ado e se esquecem do momento presente”, explica a psicóloga Juliana Alves da Silva Oliveira, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental.
Outro ponto importante para a falta de reconhecimento de momentos felizes é a tendência de desvalorização de acontecimentos positivos ou achar que não somos merecedores de algo genuinamente feliz. “A atenção focada, plena, também é outro fator determinante para que nossa mente não divague. Um exemplo é quando estamos no piloto automático e não processamos plenamente uma experiência”, ressalta.
Além disso, é frequente que não paremos para refletir sobre nossas vivências e emoções no dia a dia. “Nesse sentido, acabamos perdendo a dimensão das experiências que estamos vivendo, pois elas nos parecem comuns, como se fossem iguais para todo mundo. Mas quando elas acabam (alguém vai embora, o emprego termina ou a viagem chega ao fim) é que nos damos conta do quão especiais elas foram”, aponta a psicóloga e psicanalista Camila Fardin.
É o famoso “só dar valor quando termina.” E isso acontece, na avaliação da especialista, porque vivemos como sob um “nevoeiro”. “A vida vai acontecendo, e é como se houvesse uma nuvem à nossa frente. Essa alienação faz com que não consigamos calcular com clareza qual é o impacto real daquilo em nossa vida”, identifica.
Mas é importante ressaltar que nem tudo é culpa nossa. A cultura da hiper produtividade nos obriga a sempre estar fazendo algo útil ou rentável e pode afetar nossa capacidade de viver com presença. “A supremacia da produtividade retira de nós aquilo que temos de mais sagrado: o humano. Ou seja, conseguir olhar para o outro com afeto e atenção. No fim do dia, parece mais importante eu enviar a planilha mostrando quantas pessoas foram atendidas do que, de fato, ter estado com elas”, observa Camila Fardin.
Por isso, saber captar pilulazinhas de alegrias no meio do caos diário se trata de uma habilidade que pode ser exercida cotidianamente. “É necessário que existam momentos de resistência a toda essa cultura da produtividade. Um exemplo é parar e olhar para o céu e contemplar uma lua maravilhosa. Ali, você imprimiu dois, três minutos de resistência. Isso é um exercício. Isso é se ‘desalienar’”, acentua Camila.
Juliana Alves aponta outras estratégias para trabalharmos a percepção da beleza nas pequenas coisas do cotidiano. “A TCC integra técnicas de mindfulness (atenção plena) para ajudar a interromper padrões automáticos de pensamento e aumentar a consciência das experiências diárias", afirma.
"Outra possibilidade é identificar e desafiar pensamentos automáticos negativos e substituí-los por pensamentos funcionais realistas e equilibrados. Exercer a gratidão, focando nos aspectos positivos do dia a dia, assim treinando a mente e reconhecer e valorizar as pequenas belezas da vida. Em nossa vida precisamos observar as gotículas ao nosso redor, e por último trabalhar relaxamento com várias técnicas”, salienta.
Outro exercício que pode ser positivo para conseguir forcarmos no presente é se perguntar se a nossa vida terminasse naquele exato momento. Não é raro termos a sensação de que teremos toda a nossa existência para conseguirmos alcançar a felicidade e acabamos adiando esse exercício.
“A pergunta ‘e se você morresse hoje?’ pode parecer sombria à primeira vista, mas, na verdade, é uma ferramenta poderosa de autoconhecimento e realinhamento de prioridades. Ela nos convida a olhar para a vida com mais consciência, urgência saudável e autenticidade e pode nos ajudar a ter mais clareza sobre o que realmente importa. O importante é reavaliarmos padrões mentais autodestrutivos”, aponta a psicóloga Juliana Alves, que também é especialista em psicodiagnóstico adulto e infantil.
Até mesmo porque não são raras as em vezes em que associamos momentos especiais a eventos grandiosos ou raros, como um casamento ou nascimento de um filho. E isso acontece porque essas situações funcionam como de ritos de agem.
“Esses ritos são grandiosos e especiais justamente porque acontecem uma única vez. Por exemplo, ar na universidade. Alguém pode até fazer mais de um curso, mas a primeira vez em que entra para a faculdade marca um antes e um depois na vida. Entram nessa lista o primeiro beijo, a primeira experiência sexual, o primeiro gostar de alguém, comprar o primeiro carro, a primeira casa... Esses ritos de agem têm esse poder de marcar a vida. Todos esses eventos são grandiosos e especiais justamente porque representam uma linha que separa o que éramos antes do que nos tornamos depois”, analisa a psicóloga Camila Fardin.
A psicóloga Juliana Alves analisa ainda que, desde cedo, somos ensinados que certas ocasiões têm um peso emocional especial. Dessa forma, casamentos, formaturas, aniversários marcantes e promoções são vistos como marcos de sucesso, realização ou transição.
“Isso cria a ideia de que a vida é feita de eventos extraordinários e que o cotidiano tem menos valor. Eventos raros geralmente envolvem fortes emoções, o que os torna mais memoráveis e mais fáceis de associar à felicidade ou realização. Nosso cérebro armazena melhor experiências intensas, o que reforça a percepção de que são mais importantes. A chave está em ressignificar o que é especial: perceber que momentos significativos não precisam ser raros nem espetaculares”, sintetiza a especialista.