Parafraseando Drummond em seu poema “Para Sempre”, deveria existir um Rei do Mundo que baixasse a seguinte lei: “filho não morre nunca”. Assim, seria proibido que uma mãe perdesse a sua cria, independentemente de ela ser adulta, criança ou sequer ter nascido.
Mas como tarda a chegar tal decreto, quando “uma mãe perde um filho, todas as mães perdem um pouco também”, como diria dona Hermínia, personagem de Paulo Gustavo, em “Minha Mãe É Uma Peça.” Talvez esse tenha sido o sentimento de muita gente, não apenas das mães, ao saber da notícia de que a apresentadora Tati Machado tinha perdido o filho com 33 semanas de gestação, mesma situação da atriz Micheli Machado, cuja bebê faleceu na reta final da gravidez.
A informação da perda dos bebês causou comoção nacional, especialmente no caso de Tati, rosto visto diariamente nas manhãs da TV Globo por conta da coapresentação no programa “Encontro” e do quadro no “Mais Você.” Mas, na avaliação de especialistas, isso nem sempre acontece com as outras 44 mil mães que, a cada ano, precisam enfrentar a dor do luto perinatal. No ado, esse termo se referia à perda de um bebê a partir da 22ª semana ou após os 29 dias de vida de uma criança. No entanto, esse conceito é cada vez menos usado porque não é possível encaixotar uma dor em um período de tempo.
“O luto perinatal ainda é invisível e subestimado pela sociedade”, afiança a palestrante, psicóloga e fundadora do Grupo Sentir, Daniela Bittar. E isso acontece porque as pessoas não querem falar sobre a morte, especialmente a de bebês. “Isso remete à nossa própria finitude e à possibilidade de que nossos filhos também possam morrer. As pessoas pensam que falar a respeito pode atrair a morte”, avalia.
Mas à medida que há menos gente falando sobre um assunto, mais ele se torna tabu. Dessa forma, a mãe que perde um bebê sofre duas vezes: uma por enfrentar uma dor visceral e outra por não poder compartilhar esse momento como gostaria. “No início, todo mundo se aproxima porque fica curioso a respeito do que aconteceu. Mas dali um mês, ninguém quer mais saber, as pessoas se distanciam. Muitas mães ainda ouvem: ‘você ainda está chorando por conta disso?’ É um processo muito solitário”, elabora Daniela.
Nessa fase, a mulher ainda pode sofrer outro tipo de violência, vinda camuflada de comentários aparentemente inofensivos, como “daqui a pouco você engravida novamente”, “se o bebê tivesse sobrevivido, talvez viria com alguma doença” ou mesmo “Deus sabe o que faz.”
Esse tipo de frase, a princípio de conforto, pode trazer ainda mais dor para uma mulher enlutada. “A sociedade imediatista tem dificuldade em perceber que nós somos humanos e, portanto, íveis de dor e sofrimento. Uma pessoa enlutada é como uma afronta para os outros: ela não tem direito ao próprio sofrimento”, aponta Daniela.
Além disso, falar coisas assim perpetuam ações que poderiam ser verdadeiramente positivas para as mães. “Perde-se a oportunidade de se informar adequadamente uma mulher que a por isso. Não é por menos que, no Brasil, uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto”, salienta a psicóloga.
Cerca de sete anos atrás, a médica obstetra Mônica Nardy ou por uma situação extremamente dolorosa ao perder a filha, Cecília, na reta final da gestação. Ela tinha vivenciado uma primeira gravidez delicada, possível graças a uma Fertilização In Vitro (FIV), e Laís precisou nascer em uma cesariana.
Dois anos depois, a médica descongelou o último embrião, e, daquela vez, a gravidez foi “bem mais leve”, mas a 38 semanas e 6 dias de uma “gestação boa”, o “coraçãozinho dela simplesmente parou de bater, assim, do nada mesmo.” Não é preciso nem dizer o tamanho do baque para a obstetra. “Foi muito, muito difícil lidar com a situação, principalmente em um cenário em que as mulheres, cerca de sete anos atrás, eram muito mal cuidadas no ponto de vista obstétrico da perda gestacional”, relata.
Na época, Mônica viveu um luto avassalador potencializado pela sua função. “Pensei em largar a obstetrícia. Não conseguia me imaginar entregando filhos nos braços de suas mães, sabendo que não poderia levar a minha para a casa. Me culpei muito na época, me julguei, pensando: ‘onde foi que errei que deixei minha filha morrer?’ Foi um momento muito delicado da minha vida”, recorda-se.
Oito meses depois da perda da filha, Mônica, mesmo diagnosticada com as duas trompas obstruídas, engravidou espontaneamente de seu terceiro filho, Túlio. “Foi um milagre na minha vida, um presente da misericórdia de Deus. Minha cura e benção”, emociona-se. A médica ou por uma natural, seu sonho, e, mais do que nunca, ou a defender o parto humanizado.
É certo que a dor de perder um filho será sempre imensurável, mas há maneiras de ar por esse momento de formas menos traumáticas – inclusive isso já virou lei. Em abril, o Senado aprovou projeto o PL 1.640/2022, que institui a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental e que assegura direitos para mulheres e familiares que enfrentam perda gestacional, óbito fetal ou óbito neonatal.
A ideia é que, a partir da política nacional, seja assegurado atendimento mais humanizado às famílias, com apoio psicológico especializado, exames para investigar as causas das perdas e acompanhamento na próxima gestação, além de alas reservadas em hospitais para mães em luto.
Em alguns hospitais, a prática já acontece. O mais importante é preparar não só equipe médica, mas todos que envolvem a maternidade, do porteiro ao médico que fará o parto, observa a obstetra Mônica Nardy.
“É fundamental acolher essa mulher, identificá-la, perceber sua dor. Existem protocolos que permitem isso, como o uso de uma pulseirinha ou uma plaquinha no quarto, por exemplo. É essencial ter um cuidado respeitoso, valorizando aquele filho: chamá-lo pelo nome, dar espaço para que a família também o veja. Porque não é só o filho, também é o neto, o afilhado e o sobrinho de alguém. Permitir que a família vivencie a existência daquele bebê ajuda a fortalecer vínculos e diminui a chance de que a dor daquela mãe não seja validada”, assinala.
Além disso, é importante que a mãe e algumas horas com seu filho no colo. “Ela deve olhar todas as dobrinhas, decorar o corpo dele. A despedida começa como reconhecimento. Trazer a família para fazer um ritual, como uma benção ou algo do tipo, algo que firme a existência daquele bebê”, aponta a psicóloga Daniela Bittar.
Também há possibilidade de fazer fotos da criança para recordação futura. “Mas a mãe, muitas vezes, não condições de opinar naquele momento. Por isso, é importante ter uma equipe de profissionais do luto que façam isso por ela. Nove de cada dez mulheres se arrependem de não terem tido nenhum registro do filho”, comenta.
Os profissionais também podem fazer uma caixinha de recordações da criança, com um pouquinho de cabelo, a manta e a touca usada pelo bebê. Em Belo Horizonte, existem hospitais com equipes preparadas para o luto perinatal, como Sofia Feldman e Neocenter. “Já dei vários treinamentos, inclusive gratuitos, mas é importante que os hospitais assumam isso como protocolo, porque, quando a equipe muda, essa política acaba”, indica.
Uma mulher que acabou de ar por uma perda precisa de tempo e de respeito. “Ou você mergulha na dor da mãe ou você se afasta. Para ajudar uma mulher enlutada, é preciso dar espaço e tempo. Quanto tempo dura o amor de uma mãe por um filho? Não é possível medir, da mesma forma que não é possível falar quanto tempo um luto vai durar, ele apenas muda de fases. Primeiro é a do desespero, depois, vem a da saudade. Mas fato é que a dor nunca vai ar, vai apenas coexistir com outras coisas”, comenta a psicóloga Daniela Bittar.
Nesse contexto, a presença do bebê reborn faz sentido. “Segurar um bebê reborn no colo representa uma maneira para a mãe enlutada se despedir, chorar e falar tudo o que ela não disse”, elabora.
Também é fundamental que esta mãe encontre ambientes de acolhimento, em que possam compartilhar sobre sua dor. O Grupo Colcha, coordenado por Daniela, pela médica obstétrica Mônica Nardy e pela fotógrafa Paula Betrão, é uma dessas possibilidades. O espaço funciona como uma comunidade de apoio à perda gestacional e neonatal.
“Lá, falamos de como colocar as pacientes em um lugar adequado, do respeito à despedida, do acolhimento à família, de como dar as más notícias, do registro fotográfico, registro caixinha de memórias do bebê para trabalho de um luto saudável. Tudo que eu não tive da minha filha”, comenta Mônica.
Além disso, é importante que a mãe consiga compartilhar com o pai o sofrimento pela perda da criança. “Em muitos casos, o homem não tem espaço para se expressar e se coloca na posição de precisar ser forte para apoiar a mulher. Mas se ela observa que o pai não tem o mesmo sentimento dela, o amor por ele pode diminuir, e os dois acabarem se afastando”, comenta Daniela, destacando que, há, sim, diferenças de luto para uma mãe e um pai. “O filho nasce na mãe antes para uma mãe muito antes de para o mundo: ela vai segurar a honra da existência dele custe o que custar”, salienta Daniela.