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Fabrício Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

OPINIÃO

Parar o relógio é matá-lo

A vida gira em torno da igreja Nossa Senhora da Piedade. Ela dita o ritmo dos moradores

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 21 de fevereiro de 2025 | 03:00

Minha sogra, Clara, nasceu em Rio Espera. A família do tronco materno de minha esposa é de lá. ei várias celebrações de Natal às margens do riacho. Joguei futebol no estádio municipal.

O pequeno e charmoso município de 5.000 habitantes, na Zona da Mata, já faz parte da minha memória afetiva.

A vida gira em torno da igreja Nossa Senhora da Piedade. Ela dita o ritmo dos moradores, tanto geograficamente, numa referência para explicar um caminho, quanto temporalmente, pelas badaladas exatas dos seus sinos.

A cada um quarto de hora vivido, os sinos avisam com um toque. A cada meia hora, avisam com dois toques. A cada quarenta e cinco minutos, avisam com três toques. A cada hora cheia, dão quatro toques mais o número de horas.

Se, por exemplo, são dez horas da manhã, soarão quatro toques (de hora cheia) mais dez toques da hora específica.

Os sinos registram a duração real do cotidiano, não se limitam a estampidos simbólicos.

Servem para lembrar o início das aulas, o almoço, o jantar, o momento de se deitar.

Sempre foi assim nas últimas sete décadas, desde a inauguração, em 1959. Os sinos são o coração da cidade. Seu movimento é cardíaco.

Só que uma decisão da Justiça tem provocado polêmica, mexendo com os hábitos sedimentados dos habitantes.

A juíza da 4ª Vara Cível da Comarca de Conselheiro Lafaiete determinou que a matriz pare de tocar os sinos durante a madrugada. Atendeu parcialmente à reivindicação de um vizinho que reclamou do barulho, sob alegação de que atrapalhava o seu descanso e descumpria as normas de silêncio.

A partir da liminar, os sinos precisam se manter calados agora entre 0h30 e 4h15. A medida entrou em vigor em 31 de janeiro.

A questão é que os sinos não se reduzem a barulho, constituem o som orgânico do ambiente, como o vento, como a chuva.

Como pedir para suspender a brisa nas árvores? Ou os trovões?

Tal qual um farol orienta os navegantes, a torre protege a comunidade com os seus sons.

Existe também a sonoplastia adquirida das aglomerações urbanas. Se você reside ao lado de uma linha férrea ou de uma estação de metrô, vai pedir que o trem pare de circular porque não consegue dormir ou trabalhar com a vibração dos trilhos e o rugido dos vagões?

O mesmo posso perguntar a quem divide a vizinhança com o Corpo de Bombeiros ou com um aeroporto. Os carros dos socorristas não poderão sair da garagem, os aviões não terão permissão para decolar na calada da noite?

Não estamos falando das sinetas, devidamente manuais, que anunciam as orações, as missas, os enterros e os nascimentos – não há nenhum risco de diminuir a sua incidência –, mas do antigo relógio da igreja, um monumento de difícil e delicado funcionamento.

Quem o projetou não levou em conta a hipótese de parar. Esta deve ser a pauta principal do debate.

O equipamento de origem suíça mistura componentes mecânicos, elétricos e digitais. Muitas de suas peças não possuem reposição.

Ele não foi criado para tréguas, pausas e intervalos, mas para seguir o círculo incessante da existência.

Ou seja, não há como regulá-lo para acatar a solicitação de quietude em turno previamente fixado. A ordem é inexequível. O jeito foi desligá-lo.

Esse tempo em que ele se encontra inativo já será suficiente para que ele atrase segundos e até minutos quando for reativado.

Com o prolongamento de sua inatividade forçada, talvez não aguente e sucumba.

Acontecerão certamente efeitos colaterais.

O relógio não é um adorno, integra o conjunto arquitetônico da cidade, acompanhado da Pietà esculpida pelo Mestre Aleijadinho, da época em que o artista morou em Rio Espera.

Os visitantes e turistas frequentavam o ponto turístico justamente porque os sinos se mostravam incessantes. Aniquilou-se assim um diferencial do lugar.

Entenda que não é um capricho dos moradores, ainda que todo o quarteirão histórico tenha sido levantado pelo suor das famílias rio-esperenses, e não por obras com dinheiro público.

O problema é apenas um: retardar ou parar o relógio é matá-lo.