Só é livre quem pode dizer 'não'
'Carregamos limites, manias, crenças. Não dá para desconsiderar a singularidade de cada um'
Eu amo incansavelmente minha esposa.
Porque posso dizer “não” a ela. E ela jamais fica ofendida.
Beatriz tem vida de sobra para não depender de mim.
Agora, na Páscoa, vamos receber em nossa casa uma amiga de São Paulo, a cineasta Anna Lucchese, que adora natureza, cachoeiras e contato com a grama e o mato.
Beatriz me chamou para uma trilha em Lavras Novas.
– Vamos?
– Jamais. Eu adoro meu travesseiro. Não quero descer ribanceira, escorregar ou me equilibrar em árvores, rezando para chegar logo ao destino, não ando os mosquitos, que têm predileção pelo meu sangue.
– Então tá. Nós vamos sozinhas.
Se minha esposa fosse sacana, criaria culpa em mim: “Vai parecer uma desfeita com a nossa amiga, ela nunca vem para cá, para de ser egoísta”. Lançaria mão de chantagens desse tipo. Mas ela sempre me deixa escolher o que realmente desejo, sem renúncia, sem represália.
Eu me sinto livre. Só é livre quem pode dizer “não”.
E não estou falando do “não” para estranhos ou conhecidos. É o “não” na intimidade.
Pois é difícil e delicado dizer “não” para quem é mais próximo. É raro assumir os próprios interesses diante de quem amamos.
Sofremos no cotidiano familiar por tentar fazer tudo junto. A simbiose acaba sufocando a alegria e o prazer da convivência.
Carregamos limites, manias, crenças. Não dá para desconsiderar a singularidade de cada um.
Beatriz sabe que alguém contrariado só estragará o eio. Boicotará a paisagem, o espetáculo dos pássaros, o frescor da água – e ainda buscará convencer a todos a voltar mais cedo.
Precisamos aprender a dizer “não” para os filhos, para o marido ou a esposa, para o namorado ou a namorada, para os amigos. E entender que isso não muda o relacionamento.
Saúde emocional é permitir a sinceridade sem levar para o lado pessoal, como uma afronta.
É aceitar que um convite não é uma intimação.
Não há mal nenhum em inventar programas separados. No fim, todos estarão mais felizes, cumprindo o lazer a que aspiram em suas folgas.
Não é falta de amor. É prova de amor.
Melhor estar junto em pensamento, e ter saudade, do que se forçar a algo.
A bagagem perversa do casamento é quando tudo vira excursão, comitiva.
Você decide visitar sua mãe e se vê obrigada a incluir o marido, os filhos, a casa inteira. Sacrifica a espontaneidade, as conversas individuais, para manter o jogral desafinado e uma diplomacia litigiosa. Enfrentará o quarto fechado de um, o atraso de outro, a má vontade do terceiro.
Não se devem transformar encontros simples em cabos de guerra.
Isso abre espaço para barganhas sutis – birra, amuo, vingança.
Se seu par for de qualquer jeito, depois ele vai cobrar.
Prepare-se para os juros e para ser constrangido a ir a um evento que você odeia.