Pautas que englobam questões como aborto, religião, gênero e drogas se firmam nas discussões da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Nos primeiros meses de legislatura, a Casa avança em propostas como a afixação de cartazes que detalham o procedimento do aborto a mulheres que recorrem à interrupção legal; a criação de um “Dia Municipal de Combate à Cristofobia”; a proibição da participação de pessoas transexuais em competições esportivas; e a aplicação de multa para quem usar drogas ilícitas em espaços públicos.
Um levantamento feito por O TEMPO mostra que mais de 20 projetos ligados a esses assuntos tramitam atualmente na Câmara. Todos são de autoria de vereadores da direita, com destaque para o PL. Detentor da maior bancada partidária da Casa, o partido se aliou à chamada “Família Aro” no início do ano, o que lhe garantiu o comando da Comissão de Legislação e Justiça (CLJ) – responsável por avaliar se os projetos podem avançar ou não – e o apoio do presidente da Câmara, Juliano Lopes (Podemos), responsável por determinar quais propostas vão à votação em plenário.
O projeto mais recente a ir à votação foi o PL 39/2025, que propõe instituir o “Dia Municipal dos Métodos Contraceptivos”, em 7 de julho. A proposta, de autoria do vereador Uner Augusto (PL), prevê a realização de eventos educativos, palestras e oficinas sobre os “métodos naturais de regulação da fertilidade”. O texto foi aprovado em primeiro turno na última segunda-feira, com 22 votos favoráveis, 11 contrários e quatro abstenções.
Outro projeto ligado aos temas que já foi aprovado em primeiro turno na Casa é o PL 825/2024, da vereadora Flávia Borja (DC), que proíbe a participação de pessoas transexuais em competições esportivas. A proposta estabelece “a garantia às entidades desportivas, organizadoras de competições e afins em estabelecer o sexo biológico como critério definidor para participação em seus eventos”. No início de fevereiro, quando o PL foi a plenário, dos 41 vereadores, 25 foram a favor e 11, contra. Houve quatro abstenções.
Com votação ainda mais expressiva, foi aprovado em segundo turno, no início de abril, um projeto que autoriza o uso da Bíblia como material paradidático nas escolas públicas e privadas da capital, que está tendo sua constitucionalidade questionada. O PL 825/2024 recebeu 29 votos favoráveis, oito contrários e duas abstenções. A autoria também é de Flávia Borja, líder da Frente Parlamentar Cristã, da qual fazem parte outros 25 vereadores.
O número de integrantes da frente facilita a aprovação de projetos relacionados ao tema na Casa, visto que a maioria das propostas necessita do apoio de 21 ou 25 vereadores para ser aprovada. Os vereadores dessa bancada – que também são do espectro da direita – ainda ocupam quatro das cinco cadeiras na Comissão de Legislação e Justiça (CLJ), responsável por analisar a compatibilidade das proposições com a legislação do país, de Minas e da capital. Ela é considerada a comissão mais importante da Casa, pois tem o poder de impedir que um projeto avance nos trâmites caso o considere inconstitucional. Uner Augusto (PL) foi designado presidente da CLJ pelo presidente da Câmara, Juliano Lopes (Podemos), após o PL votar no vereador para o comando do Legislativo.
Constitucionalidade de propostas é alvo de questionamento
Entre os projetos relacionados às “pautas de costumes” levantados por O TEMPO, alguns têm gerado questionamentos quanto à sua constitucionalidade, como o projeto aprovado neste mês que propõe a Bíblia como possível livro paradidático nas escolas. Durante a votação, alguns parlamentares consideraram o projeto inconstitucional e argumentaram que ele não deveria sequer ter sido aprovado na CLJ.
Paulo Henrique Studart, advogado especialista em direito constitucional, avaliou não haver inconstitucionalidade no projeto que autoriza o uso da Bíblia como material paradidático, por estabelecer a “possibilidade” de utilização em atividades de caráter facultativo. A proposição está na fase de redação final.
Já o projeto que trata da participação de pessoas transexuais no esporte, em fase de segundo turno, foi classificado como de “duvidosa constitucionalidade” pelo jurista. “Tanto sobre o aspecto formal quanto o material. No que diz respeito ao aspecto formal, a questão ultraa a competência legislativa municipal, que deve se restringir a assuntos de interesse local. Materialmente, a questão é muito controversa e de difícil resolução”, disse.
Ele afirma que a proposta pode ferir princípios como igualdade e dignidade da pessoa, mas ressalta que são conceitos “abstratos” e de “difícil aplicação”. “No próprio Judiciário, a questão não me parece muito clara e definida”, avaliou Paulo Henrique Studart.
O advogado ressaltou que a Câmara tem competência para legislar sobre assuntos de interesse local. “E essas pautas citadas abordam temas sensíveis, com implicações em direitos fundamentais, e que nem sempre têm relação direta com as atribuições específicas do município. Então, é preciso cuidado para que o município não use sua competência legislativa para promover pautas morais ou ideológicas que violem direitos fundamentais ou criem normas discriminatórias”, reitera.
Para a vereadora Cida Falabella (PSOL), da bancada da esquerda, o volume de projetos ligados ao que chamou de “guerra cultural” não só ataca direitos como trava o funcionamento do Legislativo. “A Câmara de BH perde um tempo precioso debatendo e votando proposições inconstitucionais em vez de se debruçar sobre os reais problemas da população, como transporte, moradia, saúde”, avalia.
Já o presidente da CLJ, Uner Augusto, argumenta ser natural a apresentação dos projetos pela tamanho da bancada conservadora. Foram protocolocados 154 projetos desde janeiro. “Eu acredito que pode chamar atenção o número de projetos que se relacionam com o que a gente pode chamar de ‘pauta conservadora’, porque temos muito vereadores que defendem essas bandeiras. O PL elegeu a maior bancada, então é natural que haja mais projetos de lei protocolados com os valores que os vereadores defendem. Mas também me chama atenção outras pautas que talvez tenham mais projetos proporcionalmente”, afirma.
Professor contesta rótulo "conservador" para alguns projetos
O doutor em ciência política Robson Sávio Reis Souza, professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, contesta o uso do rótulo “conservador” para determinados projetos. “É fundamental a gente fazer uma distinção entre o que é projeto conservador, projeto reacionário sobre o ponto de vista político e projeto fundamentalista sobre o ponto de vista religioso. Nem todo projeto conservador é reacionário ou fundamentalista”, observa.
Na avaliação do professor, o conservadorismo defende a preservação das instituições, dos costumes e dos valores sociais tradicionais no contexto da cultura e da civilização, mas reconhece avanços, como a conquista de direitos. Já para os adeptos ao reacionarismo político, “sempre há um tempo anterior que se apresentava como solução para os problemas da sociedade”, enquanto o fundamentalista cristão tem uma “interpretação estreita da Bíblia”, analisa o especialista.
O professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Moacir de Freitas Junior avalia que os projetos de lei têm como objetivo dialogar diretamente com setores mais radicalizados da sociedade, mantendo essa base mobilizada e funcionando como uma espécie de “prestação de contas” dos vereadores ao seu eleitorado – mesmo que as propostas possam não prosperar depois por serem consideradas inconstitucionais.