À época da descoberta das 19 ossadas na Porto Mesquita, a fazenda pertencia a Joaquim Cordeiro Machado. Mas ele não sabia dos crimes cometidos em suas terras, que comprara quatro anos antes de um advogado. Este adquiriu a propriedade em 1970, de José Luís Figueiredo, o Zé Figueiredo.
A fazenda hoje é istrada por Luiz Otávio, quinto dos sete filhos de Joaquim Machado. Ele tinha 9 anos quando encontraram as ossadas. Luiz lembra da chegada dos investigadores na madrugada de 25 de junho de 1975.
“Uns policiais bateram na porta da nossa casa. Contaram a história para o meu pai e disseram que estavam procurando as cisternas.” Luiz Otávio conta ainda que o pai “desarmou todo”, pois não fazia ideia que aquilo acontecera em sua propriedade.
“Mas ele fez questão de ir com o Zé Bigode, que estava atrás de um dos carros e tinha contado pros policiais que eram 10 corpos. Mas primeiro acharam 14. Lembro do meu pai virar e falar: ‘Catorze, Zé? Isso tudo?’ Depois eram 19”, relata Luiz Otávio.
Zé Bigode era o apelido de José Teixeira Maciel, funcionário da Porto Mesquita quando a fazenda pertencia a Zé Figueiredo. Foi com a prisão e confissão de Zé Bigode que policiais chegaram às ossadas. Ele apontou o local da desova. Disse ser o responsável por abrir e fechar a tronqueira que dava o à “cisterna da cascalheira”.
“Aqui a gente sempre ouviu histórias de jagunços, que um mandou matar outro. Mas ninguém fazia ideia que tinha havido uma chacina”, comenta Luiz Otávio. “Meu pai queria ir até o fim nessa história. Estava bravo porque usaram as cisternas até quando a fazenda já era dele”, ressalta o filho de Joaquim Machado.
A intenção do pai, segundo Luiz Otávio, era “limpar as cisternas”. “Mas aí veio uma intervenção política que mandou parar tudo, cortou a verba da polícia. Meu pai até falou que pagaria para tirar o resto, mas os parentes e amigos falaram para deixar aquilo pra lá”, conta o herdeiro da Porto Mesquita.
Luiz Otávio diz não se incomodar em morar e trabalhar em terras que foram cenários de uma chacina. Nem mesmo se preocupa com o possível estigma da propriedade. Acredita que o tempo apagou aquilo que poderia ser visto como uma maldição. “Hoje pouca gente fala disso. E todos os envolvidos morreram.”
Quando Luiz Otávio deu a entrevista, seu pai estava com 92 anos e morava em Pompéu. Joaquim Machado não tinha condições de receber a reportagem porque estava com a saúde bastante debilitada. Morreu meses depois, em novembro de 2024.
Ao menos quatro suspeitos detalharam as execuções em Angueretá. Os depoimentos deles estão em relatórios da Polícia Civil recuperados pela equipe de O TEMPO em arquivo público.
Dois desses quatro suspeitos, que acabaram indiciados, são Zé Bigode e outro conhecido como Boca Rica. Eles apontaram os locais das desovas. Também deram informações detalhadas das vítimas, que foram atestadas por peritos.
Zé Bigode contou que recebia 600 cruzeiros por mês para vigiar a cisterna, abrir a porteira quando os assassinos chegavam com as vítimas e cobrir os corpos com terra e cascalho.
Boca Rica confessou ter dirigido o jipe usado em alguns dos crimes. Contou que as vítimas eram escoltadas por policiais militares de Sete Lagoas e levadas à morte amarradas com fios de náilon. Peritos encontraram o material junto às ossadas.
Zé Bigode acrescentou que, ajoelhadas, as vítimas receberam ao menos um tiro na cabeça. Relatou que, na primeira cisterna aberta, onde havia só um crânio, a pessoa morreu após o executor enfiar o cano de um revólver na boca dela, deslocando um dente postiço. Perito constatou que faltava um incisivo lateral da arcada superior.
Peritos e bombeiros aram duas semanas trabalhando na Porto Mesquita. Tiraram uma ossada completa de uma cisterna, a cerca de 150 metros da sede da fazenda, e outras 18 da segunda cisterna, a 400m da casa e a 100m do rio Paraopeba.
Examinando os crânios, legistas concluíram que receberam tiros de calibre .32 ou .38. Uma era de um jovem com 17 ou 18 anos e as demais, de pessoas com 25 a 45 anos.
Distante cerca de 200m um da outra, as cisternas eram meros buracos cavados em meio ao cerrado virgem, sem qualquer identificação ou acabamento. A com a maior quantidade de restos mortais tinha ao menos 28m. As duas foram fechadas há 15 anos, quando tratores derrubaram a mata para dar lugar a pasto.
As ossadas foram levadas para análises de legistas na PUC-MG, em Belo Horizonte. Durante a apuração desta série de reportagens, a equipe de O TEMPO tentou encontrar os restos mortais e outras provas da investigação. A Polícia Civil mineira disse, em curta nota, que não poderia ajudar.
Peritos e bombeiros que trabalharam na remoção dos 19 crânios das cisternas de Angueretá disseram que muito provavelmente havia mais vítimas, por uma série de evidências, além do fato de o trabalho deles ter sido interrompido de forma abrupta.
Os buracos eram muito fundos e estavam tomados por água. Eles davam em um fértil lençol freático, com galerias subterrâneas, espécie de rio sob a terra, que pode ter levado outros ossos.
Outra evidência de que poderia haver mais vítimas de execuções naquele distrito de Curvelo distante 120km de Belo Horizonte foi a quantidade de ossos de outras partes do corpo retirados de uma das cisternas da Fazenda Porto Mesquita.
Bombeiros encontraram mais ossos que os 19 crânios indicavam, segundo os peritos. Tudo em meio à lama. Suspeitos disseram que jogaram cascalhos sobre os corpos para esconder a vítima e o mau cheiro, não atrair animais nem curiosos.
Havia outra forte suspeita sobre maior quantidade de vítimas, levantada ainda hoje por moradores. A de corpos jogados no rio Paraopeba. Era (e ainda é) relatada uma prática considerada comum à época para impedir a localização de vítimas de assassinatos.
Após serem executadas em terra, elas tinham a barriga cortada. Dentro d’água, o sangue e as vísceras atraíam as piranhas, abundantes no Paraopeba. Em duas horas, os peixes carnívoros devoravam tudo, inclusive roupas e calçados.
“Acharam 19 na cisterna, né? Mas tinha mais, que jogaram no rio. É o que dizem”, comentou Aristeu Ribeiro de Almeida, 74 anos, que nasceu e mora em Angueretá. Trabalhou na Porto Mesquita, quando a propriedade pertencia a Zé Figueiredo.
“O povo fala que tinha mais mortos, por fora [além das cisternas]. Dizem que teve gente jogada no rio. Eu acho que foi isso mesmo”, reforçou João Gonçalves de Oliveira, 83 anos, morador e dono de um sítio em Angueretá.
O espaço permanece aberto para manifestações de instituições e familiares das pessoas citadas. Informações sobre os crimes em Angueretá podem ser enviadas para [email protected].