Racismo não é assunto só de preto; brancos precisam se implicar, diz especialista
Luta antirracista precisa contar com a colaboração de todos para a superação do que Tatiana Carvalho Costa define como 'atraso e chaga social'
Aos 35 anos, Giovana Ribeiro, que é autônoma, afirma que é preciso “entender que o racismo é um problema real e antigo que data da chegada dos portugueses ao Brasil”. “É algo crônico, que está enraizado, e as consequências são reais até hoje. Nós, pessoas brancas, precisamos entender porque o racismo existe, de onde veio, porque se mantém e o que podemos fazer para diminuir os impactos disso ou colaborar em prol da luta antirracista”, declara Giovana.
Gerente de restaurante, Thales Ricardo acumulou experiência suficiente para, aos 25 anos, compreender que “para a gente que é preto é comum ar por situações de preconceito no emprego, no ônibus, ao atravessar a rua”. “Precisamos ar para as pessoas que essas coisas acontecem e não são normais. Não é vitimismo. Somos uma classe que trabalha, rala muito, carrega esse país nas costas”, afirma Thales.
O professor de inglês Daniel Augusto, de 34 anos, acredita que é fundamental “lutar contra o racismo estrutural que existe em nós mesmos, contra os pequenos atos do dia a dia de uma cultura que está arraigada”, e dá como exemplo “ensinar o filho a não ter esse ponto de vista racista que é transmitido de geração em geração”.
Questão coletiva
Presidente da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), a professora, pesquisadora e curadora de cinema Tatiana Carvalho Costa recorre a uma frase da intelectual negra Beatriz Nascimento para explicitar a crueldade da discriminação: “O racismo é um emaranhado de sutilezas”. Segundo ela, é necessário “as pessoas brancas se implicarem” nesse debate, “porque são as principais beneficiadas”. “É importante que compreendam o próprio privilégio e todas as dinâmicas que têm a ver com o racismo. Muitas vezes, as pessoas brancas se entendem como um sujeito universal, sem levar em conta a perspectiva racial”, aponta.
Ciente de que “as pessoas pretas são vítimas do racismo”, Tatiana sustenta que ele “também afeta as pessoas brancas, numa neurose coletiva, como dizia a (antropóloga, ativista, filósofa e pensadora negra) Lélia Gonzalez”. “E não estou falando de vitimizar as pessoas brancas, que, em casos extremos, se tornam violentas com pessoas negras porque têm, inconscientemente, essa ideia de superioridade racial que atrasa o desenvolvimento de um país, impedindo que a gente e a riqueza da nossa pluralidade”, observa a especialista, que define o racismo como “um atraso coletivo”.
“Além de ser um mecanismo violento de eliminação da vida, é só olhar os números de quais pessoas morrem por arma de fogo no país. Estamos perdendo a nossa juventude negra, quantos jovens negros cheios de inteligência contribuiriam para a sociedade brasileira e foram assassinados por conta da dinâmica racista da sociedade?”, questiona Tatiana, que não tem dúvidas quanto ao tema se tratar de “uma questão coletiva”. “As pessoas brancas, por ainda estarem em condição de privilégio, são as que têm condições de interferir para desconstruir isso, ando, obviamente, pelo questionamento dos privilégios, entendendo a necessária divisão de protagonismo”, complementa.
Chaga social
A recente reação do Conselho Federal de Medicina, que se posicionou contra as cotas raciais para residência médica, defendendo que se tratava de “discriminação reversa” é utilizada por Tatiana para exemplificar a relutância de muitas pessoas brancas em se implicarem na dinâmica racista que rege a sociedade brasileira. “Isso é racismo puro. O racismo é uma chaga social, que nunca será um problema só das pessoas negras. Pense no quanto as nossas universidades se enriqueceram com as cotas raciais, que levaram para lá o pensamento das feministas negras, das filosofias africanas, da revisão da própria história desse país”, opina ela, que crê na “reparação histórica como uma discussão essencial para esse debate”.
“Essa discussão não é exclusiva do Brasil nem recente. Mas o dado é que, de 1.500 para cá, temos 70% de tempo de escravização, e mesmo o pós-abolição foi muito problemático. O raciocínio escravocrata, de exploração das pessoas negras, permanece. Esse é um debate fundamental para enfrentar a desigualdade econômica. A meritocracia é uma grande falácia da ideologia da supremacia branca e patriarcal. Não é coincidência nem incompetência delas que mais de 80% das pessoas pobres nesse país sejam negras”, observa Tatiana.
A pesquisadora traz à baila outro fato histórico para corroborar a sua fala: a substituição do 13 de maio pelo 20 de novembro para comemorar o Dia da Consciência Negra, iniciativa que contou, no parlamento brasileiro, com a obstinação de Lélia Gonzalez e do poeta, ator e dramaturgo Abdias do Nascimento, que foi deputado e senador, como “celebração da negritude e não de uma branquitude redentora, como se a princesa Isabel tivesse sido a responsável pela liberdade e não houvesse resistência negra no Brasil através do quilombo de Zumbi e de tantos outros”. “O feriado é importante para que a sociedade reflita, coletivamente, sobre essas questões”, finaliza.
Papel do cinema e do jornalismo
Para Tatiana Carvalho Costa, a contribuição do cinema no enfrentamento ao racismo se dá através de uma “descolonização do imaginário, no sentido de povoá-lo com imagens e articulações narrativas que dêem conta da pluralidade da população brasileira, representando o protagonismo e normalizando a vida negra para além dos estereótipos”. “É preciso enfrentar uma construção histórica de estereótipos que colocam as pessoas negras em posições subalternas e as brancas em posição de privilégio. E não é simplesmente inverter essa chave, porque o combate ao racismo não se faz dessa maneira. Temos que construir outras relações, que não sejam essas verticais de poder, porque o racismo se estrutura numa sociedade que precisa de marcadores hierárquicos”, afirma.
Tatiana aborda, como exemplo, o racismo de viés religioso, que “incute na cabeça das pessoas a inferiorização de sua própria raça e de símbolos de matriz africana, que são considerados demoníacos e atacados violentamente por outras religiões”, e aponta que a “predominância no imaginário coletivo de uma ideia supremacista branca” está atrelada ao “modo como a mídia vem trabalhando, felizmente agora com alguns contrapontos, que precisam ser mais frequentes”.
“Mas, historicamente, existe um processo de lavagem cerebral, e aí incluo o jornalismo. Há vários ‘memes’ que denunciam, de maneira irônica, um problema gravíssimo do jornalismo”, diz ela, referindo-se a manchetes que escolhem as palavras “estudante de medicina” para o homem branco pego com drogas, e “traficante ou criminoso” para o negro na mesma situação. “É aquela escala de cor para dizer quem é culpado ou inocente, que o Estado reitera por meio da sua força policial”, arremata Tatiana.