Hipopótamos à solta
Estamos vendo, lendo e ouvindo isso mesmo?
De fato, parece que algumas pessoas são dotadas do dom da premonição. No século XVIII o brilhante Chesterton já filosofava sobre a onda de estupidez que ele antevia, assustadora, no horizonte da humanidade. “Chegará o dia em que teremos de provar ao mundo que a grama é verde” – disse. Giorgia Meloni, a primeira-ministra italiana, também citou a obviedade galopante num de seus discursos com a frase “ainda teremos batalhas com fogo e espadas para provar que dois mais dois são quatro”.
Aqui no Brasil o implacável Nelson Rodrigues já havia denunciado essa coisa ululante e a ela até dedicou um livro. Parece que, por umas décadas, o óbvio permaneceu adormecido em companhia da burrice. Mas eis que, na virada do século, ganhou novas forças e faz grande reestreia.
Meu contato mais recente com os discursos do óbvio ocorreu numa sala de espera. Recepções de consultórios costumam ser depósitos de revistas “Caras” antigas. Na falta de algo melhor para ar o tempo antes do suplício, resta ao cliente folheá-las sem compromisso, correndo os olhos pelas fotos sorridentes de socialites, milionários e celebridades do momento.
Ilustrando tais reportagens o redator da publicação pinça frases ditas pelos referidos entrevistados, espargindo sobre o universo dos leitores dádivas de sabedoria e filosofia profunda. Declarou o ator da TV: “a vida é uma coisa muito bonita”. A jovem senhora que abraçava duas crianças: “meus filhos são muito queridos”. O cirurgião plástico, rodeado de gente: “importante é cultivar as amizades”. Tudo entre aspas e em letras grandes, fazendo o leitor se extasiar diante de tais brilhantismos, ponderações originais e fundamentais para os rumos da humanidade.
Numa embalagem de pão – comum – estão impressas três dicas. A primeira: “experimente sua baguete com manteiga. É uma delícia!” Segunda: “Sua baguete com requeijão cremoso fica ainda mais gostosa”. A terceira: “a baguete é perfeita para acompanhar saladas. Já experimentou?” Isso é o que nos agride pelas manhãs. Enquanto degusto meu café com pão, criei o hábito de deixar a TV ligada como fundo sonoro do amanhecer, inteirando-me dos fatos recentes através dos repórteres e apresentadores. Alertado, apuro os ouvidos. Pelo visto, tudo indica que o discurso do óbvio acompanhado de sua fiel amiga platitude arrumou emprego fixo nas emissoras.
Um acidente aéreo. Afobada, a jovem repórter informou aos sonolentos telespectadores matinais: “Após a queda da aeronave, iniciou-se um grande incêndio porque o combustível é altamente inflamável”. Meus ouvidos mal se recuperavam do desastre quando outro repórter – preocupado com mais um acidente, este de motocicleta, afirmou, convicto, que "o aumento de acidentes com motos pode estar relacionado com o grande número de pessoas que optaram por essa modalidade de transporte" Será, mesmo? Não teria sido pelas conjunções adversas do zodíaco?
Parece que os repórteres da TV são entusiastas dessa nova modalidade e ando colecionando suas pérolas. Outro dia, no jornal da noite, falando de assaltos, dispararam uma informação excepcional: “por causa de seu valor, o ouro é muito visado pelos ladrões”. E outro, comentando a irresponsabilidade de certos motoristas, não deixou por menos e fez um alerta aos distraídos pedestres: “...um atropelamento pode causar muitos danos à vítima.”
Enfim, o óbvio se insinua sorrateiro nas falas dos incautos e, como um tiro de canhão, alcança nossas orelhas. Informando aos telespectadores sobre a circulação nos logradouros públicos – como dizem os burocratas - disse a repórter: "o trânsito está bastante pesado agora na avenida por causa dos automóveis e caminhões". Suspirei aliviado. Ainda bem: já pensou se fosse por conta de elefantes, hipopótamos e rinocerontes caminhando calmamente no asfalto pelos quatro cantos da cidade?