BRASÍLIA – Com apenas quatro anos, Brasília, a capital construída a partir do desejo de trazer ares de modernidade e unidade ao país, com suas largas avenidas e edifícios monumentais, além de rodovias ligando as regiões Sul e Sudeste ao restante do Brasil, assistiu quase inerte ao golpe militar deflagrado na noite do dia 31 de março de 1964.
Naquele dia, enquanto João Goulart, o Jango, despachava no gabinete do Palácio das Laranjeiras, na Guanabara (atual Estado do Rio de Janeiro), um general lotado em Minas Gerais, Olympio Mourão Filho, antecipava o movimento previsto inicialmente pelas Forças Armadas para 2 de abril e colocou suas tropas em direção à antiga capital.
“Eu estava de pijama e roupão de seda vermelho. Posso dizer com orgulho de originalidade: creio ter sido o único homem no mundo que desencadeou uma revolução de pijama”, anotou o general em seu diário. No Rio, o general Antonio Carlos Muricy recebeu a senha de Mourão para se dirigir a Juiz de Fora: “começou a brincadeira”.
Às 4h de 31 de março, o comboio de militares começou a se preparar para tomar vários pontos entre a cidade mineira e o Rio de Janeiro. No início da manhã, parte das tropas estavam na estrada.
Já em Brasília, por volta das 9h, o aeroporto foi fechado por militares golpistas. No meio da tarde, o prédio do Ministério da Guerra se dividia entre golpistas, que controlavam do 5º ao 8º andar, e legalistas, nos andares acima e abaixo.
Militares também se movimentavam no Rio. O Palácio das Laranjeiras foi cercado por legalistas. Já oficiais golpistas, como Castelo Branco e Costa e Silva, foram se esconder, para escapar da prisão por conspiração e traição.
Chefe da Casa Militar, o general Assis Brasil garantiu a Jango que os rebeldes seriam logo sufocados. Disse ter um “dispositivo militar” pronto para resistir. Mas logo Jango percebeu o blefe. Acuado, dizia não querer “derramamento de sangue”. Com isso, não deu uma ordem para comandantes das forças armarem as tropas contra os rebeldes.
No fim da tarde de 31 de março, o senador mineiro Juscelino Kubitschek, que já havia sido presidente do Brasil, divulgou uma nota afirmando que “a legalidade está onde estão a disciplina e a hierarquia”. Em seguida, por volta das 17h, ele foi recebido por Jango no Palácio das Laranjeiras.
JK deu uma conselhos para evitar o golpe. Sugeriu a Jango fazer um pronunciamento conciliador para, entre outras coisas, deixar claro que repudiava o comunismo e garantia a anistia aos militares sublevados. JK também propôs a nomeação de um novo ministério, de caráter conservador.
“Eu não posso fazer isso. Se fizer isso dou uma demonstração de medo e um homem que tem medo não pode governar o país”, respondeu Jango, segundo JK. “Esse movimento que explodiu em Minas será debelado prontamente, esse manifesto do Mourão, será destruído pelas tropas fiéis ao governo. Amanhã tudo isso estará terminado”, emendou o presidente.
Jango distribui aos repórteres presentes no Palácio das Laranjeiras um texto intitulado “Comunicado do Presidente da República”. A nota informava que o Ministério da Guerra havia enviado tropas do I Exército para acabar com a rebelião.
Ministro da Guerra, o general Jair Dantas Ribeiro ou o comandante do I Exército, general Armando de Moraes Âncora, e distribuiu uma nota aos comandantes dos quatro Exércitos declarando que a ordem seria restabelecida “a qualquer preço”.
A primeira-dama Maria Thereza Goulart telefonou para o número do Palácio Laranjeiras. Ela, que estava na Granja do Torto, a residência de campo da Presidência em Brasília, disse temer o golpe. Pediu ao marido que voltasse para a capital federal.
Por volta das 22h, o líder das tropas paulistas, Amaury Kruel, ligou para Jango e exigiu a demissão de seus ministros de esquerda. O oficial já havia feito dois contatos com o presidente, com os mesmos apelos, dizendo que essa era a posição dos generais.
“General, eu não abandono os meus amigos. Se essas são as suas condições, eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique com as suas convicções. Ponha as tropas na rua e traia abertamente”, respondeu Jango. Quartéis do Rio e de São Paulo aderiram ao golpe, com aval do governo norte-americano, por meio do seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon.
Anos depois, a Comissão da Verdade teria testemunhos e provas de que alguns receberam dinheiro de empresários para abandonar o presidente. Já documentos do governo dos Estados Unidos mostrariam o financiamento de desestabilização do governo Jango e fortalecimento de seus adversários, principalmente militares.
Em apoio a Jango atuava uma cadeia de rádios formada pela Nacional, Mayrink Veiga, Continental e MEC, na madrugada de 31 de março para 1º de abril. O então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), José Serra, defendeu o governo na Rádio Nacional. Outro foi o deputado federal Rubens Paiva, representante de São Paulo.
“Está lançado para todo o país o desafio: de um lado, a maioria do povo brasileiro desejando as reformas e que a riqueza se distribua, os outros são os golpistas que devem ser repelidos”, afirmou Paiva. Com o golpe, ele foi cassado, preso e assassinado. História contada em Ainda Estou Aqui, o filme vencedor do Oscar.
Na manhã de 1º de abril, Jango foi informado que o governo dos EUA reconheceria quem o derrubasse. Seu ministro da Guerra se demitiu. Alertado que estava para ser preso, ele voou para Brasília no início da tarde. A partida do Rio levou à desmobilização das forças legalistas e ao fortalecimento das tropas golpistas.
Ainda na cidade do Rio, estudantes a favor de Jango foram espancados nas ruas, o prédio da UNE foi incendiado e a Federação Nacional dos Estivadores, dos Marítimos e outras organizações sindicais acabaram tomadas pelas forças golpistas. A Rádio Nacional saiu do ar.
Jango chegou à Brasília por volta das 15h30. Reuniu seus homens de confiança no Palácio do Planalto, onde ficaram pouco tempo, o suficiente para o presidente pegar alguns documentos e falar com quatro jornalistas. De lá, Jango e seus aliados, entre eles Tancredo Neves, líder do governo na Câmara, seguiram para a Granja do Torto.
Na residência de campo, discutiram se ele deveria permanecer na cidade e montar resistência ou seguir ao Rio Grande do Sul. Brasília tinha a vantagem da legitimidade da sede de poder, diziam alguns. Mas lá estava isolado, longe do apoio popular, alegavam outros.
O presidente pediu que fosse redigida uma declaração à população, garantindo que lutaria “sem tréguas para defender o povo contra as arremetidas da prepotência do poder econômico” e denunciava “as forças reacionárias que atacavam as instituições democráticas e a libertação econômica da pátria”.
Por volta das 18h, o golpista Castello Branco foi considerado novo ministro do Exército. Jango decidiu rumar para o Rio Grande do Sul, mas havia o medo do avião presidencial ser interceptado pela Força Aérea Brasileira (FAB). Havia informações de que se a aeronave asse sobre São Paulo seria abatida.
Por isso, a viagem deveria ser num Coronado (Convair 990) da Varig, usado para voos comerciais, mas o avião teve uma pane – houve suspeita de sabotagem. Estavam no aeroporto, acompanhando Jango e familiares, Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, e o deputado federal Waldir Pires, que havia sido ministro do Trabalho de Jango.
A viagem atrasou e foi feita num bimotor da Presidência, que decolou por volta das 23h30. O pequeno avião seguiu para a capital gaúcha em baixa altitude e por uma rota alternativa: Mato Grosso, ando pelo Paraguai e entrando no Rio Grande do Sul pela fronteira oeste.
Jango levou cinco horas para chegar a Porto Alegre. O bimotor pousou na capital gaúcha às 4h de 2 de abril, contava com os apoios do então deputado federal Leonel Brizola, operários e III Exército para uma resistência. Mas a Polícia Militar foi leal ao governador Ildo Meneghetti, um golpista.
Pouco antes da meia-noite de 1º de abril, o presidente do Senado e do Congresso, Auro de Moura Andrade, convocou uma reunião extraordinária no plenário da Câmara dos Deputados. Ele decretou a vacância do cargo de presidente da República, sob a justificativa de que Jango havia abandonado o país.
Auro de Moura, que chegara ao cargo indicado por Jango, ignorou ofício levado por Darcy Ribeiro comunicando que o presidente se deslocara para a capital gaúcha, onde montaria seu gabinete, apoiado pelas tropas legalistas.
“Declaro vaga a presidência da República e, nos termos da Constituição, invisto no cargo o Presidente da Câmara, Sr. Ranieri Mazzilli. Está encerrada a sessão!”, declarou Auro de Moura. “Canalha! Canalha! Canalha!”, gritou Tancredo Neves, quando a sessão foi dada como encerrada.
Já no início da madrugada de 2 de abril de 1964, Mazzilli tomou posse no Planalto. A atitude legitimava o golpe. O Judiciário deu seu aval pelo comparecimento do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Álvaro Moutinho da Costa, à posse. Ele era filho de general e irmão de coronéis.
Mas o poder estava de fato com o Comando Supremo da Revolução. Compunha esse comando o general Costa e Silva, o almirante Augusto Rademaker Grünewald e o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo.
Em 9 de abril, o Comando declarou o Ato Institucional n° 1, o AI-1, que antecipou as eleições presidenciais e suspendeu por 10 anos os direitos políticos dos cidadãos vistos como opositores ao regime, entre eles congressistas, militares e governadores.
O (AI-1) também proibiu o Judiciário de analisar questionamentos contra a cassação de mandatos e a suspensão de direitos políticos, e esclareceu que a “revolução” poderia ter dissolvido o Congresso e abolido a Constituição, mas escolheu preservá-los com ressalvas, limitando seus poderes, que seriam diminuídos mais com outros atos.
Dez dias após a posse de Mazzilli, os congressistas elegeram o general Castelo Branco presidente da República. Com a posse dele, em 15 de abril, o Comando Supremo encerrou suas atividades.
Com a decretação do AI-2, o STF teve sua composição ampliada de 11 para 16 magistrados um ano após o golpe. Assim, os militares garantiram maioria a favor do governo, usando o Supremo para legitimar as normas criadas pelo regime ditatorial.
Já João Goulart, ainda na manhã de 2 de abril, foi comunicado que tropas de Curitiba marchavam sobre Porto Alegre. Ele teria duas horas para deixar o país se não quisesse ser preso.
Jango entrou em um avião da Varig pertencente à FAB. Voou para a Fazenda Rancho Grande, uma das suas estâncias em São Borja, onde já estavam Maria Thereza e seus filhos. Jango decidiu ir para o exílio no Uruguai.
Em uma folha de caderno escolar, o presidente escreveu uma carta ao governo uruguaio pedindo asilo. O destinatário era seu amigo João Mintegui, adido comercial da Embaixada do Brasil em Montevidéu. O texto foi entregue ao piloto que levaria a família de Jango ao Uruguai.
Jango datou a carta de 4 de abril, mas, segundo o filho de Mintegui, ela foi escrita no dia 3. Seu avião decolou de São Borja para Montevidéu em 3 de abril. Chegou ao exílio no dia seguinte.
João Goulart nunca renunciou oficialmente ao cargo, mas a mudança para o Uruguai sacramentou a renúncia. Assim como muitos dos seus aliados, acreditava que logo haveria um novo governo civil. Estavam errados.
Assim como em outras grandes cidades do país, o povo foi às ruas em Brasília contra o golpe. Um grupo tentou fazer manifestações na avenida W3 Sul, então principal centro comercial da nova capital, nos dias 2 e 3 de abril.
Mas, assim como ocorreu na Cinelândia, no Rio de Janeiro, no centro do Recife, em Pernambuco, e em Porto Alegre, os militares reprimiram os atos, com porretes, bombas e prisões.
Jango só retornaria morto ao Brasil, 12 anos depois da deflagração do golpe. Ele morreu em 6 de dezembro de 1976, em Mercedes, na Argentina, vítima de parada cardíaca. O corpo do ex-presidente foi levado de carro até São Borja. Apesar do caixão lacrado, a comoção popular foi grande.
Sua morte, um ataque cardíaco, foi considerada natural até que suspeitas de envenenamento culminaram com a exumação de seu corpo, em 2013. Um ex-agente secreto do Uruguai disse, em depoimento, que os remédios que Jango tomava para o coração foram manipulados com o objetivo de envenená-lo.
A Polícia Federal divulgou o laudo da perícia em 1º de dezembro de 2014. O resultado foi inconclusivo.