ANOS DE CHUMBO

UnB teve campus invadido, laboratórios destruídos, estudantes e professores presos na ditadura

Instituição de ensino superior sofreu quatro grandes invasões de militares e teve estudantes presos e torturados; reitor e professores foram demitidos

Por Renato Alves
Publicado em 31 de março de 2025 | 07:10

BRASÍLIA – A Universidade de Brasília (UnB) foi o principal alvo dos militares na capital durante a ditadura implantada com o golpe de Estado que derrubou João Goulart em 31 de março de 1964 e perdurou até 1985, quando José Sarney assumiu a presidência, marcando o início da chamada Nova República.

A instituição sofreu quatro invasões durante o regime. A primeira em 9 de abril de 1964, nove dias após o golpe, quando tropas do Exército entraram em salas de aula e revistaram estudantes. Buscavam 12 professores acusados de portarem materiais de propaganda comunista. Os militares interditaram a biblioteca e a sala dos professores.

Presos, professores e alunos foram submetidos a um inquérito militar que apurou “subversão” no campus, mas acabou arquivado por falta de provas. No entanto, o reitor Anísio Teixeira e o vice Almir de Castro Teixeira, que haviam assumido os cargos em 1963, foram demitidos. O governo ainda cortou verbas da UnB. 

Teixeira difundiu o movimento da Escola Nova, que pregava o desenvolvimento do intelecto e a capacidade de julgamento, em preferência à memorização. Foi um dos mais destacados signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em defesa do ensino público, gratuito, laico e obrigatório, divulgado em 1932.

No ano seguinte à demissão da UnB, Anísio Teixeira foi para os Estados Unidos, onde deu aulas nas Universidades de Columbia e da Califórnia. De volta ao Brasil em 1966, tornou-se consultor da Fundação Getúlio Vargas. Desapareceu em 11 de março de 1971, sendo encontrado morto três dias depois, após ter sido detido por militares. 

Seu corpo estava no fosso do elevador de um prédio do Rio de Janeiro, sem sinais de queda nem hematomas que comprovasse a versão oficial de um acidente. Seus famosos óculos estavam ao lado, sem um arranhão nas lentes. Ele nunca militou em um grupo de esquerda, muito menos pegou em armas contra a ditadura.

Tiros, prisões e estudante baleado dentro do campus

Na madrugada de 11 de outubro de 1964, militares cercaram as entradas do campus da UnB e proibiram a entrada de alunos e professores. Uma semana depois, o reitor demitiu 15 professores. Entre eles, Sepúlveda Pertence, que seria ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Em resposta, 223 dos 305 docentes pediram exoneração.

Em abril de 1967, em resposta aos protestos contra a visita do embaixador norte-americano John Tuthill à universidade, estudantes foram agredidos na biblioteca, de onde foram impedidos de sair. O governo dos EUA apoiou o golpe contra Jango.

Já a mais violenta das invasões à UnB começou na manhã de 29 de agosto de 1968. Logo cedo os agentes da repressão apareceram no campus com mandados de prisão contra sete líderes do movimento estudantil.

Os jovens eram acusados de atentar contra a segurança nacional por manter clandestinamente a Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (Feub) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), que haviam sido dissolvidas pelo regime. 

O presidente da Feub, Honestino Guimarães, foi espancado e preso no campus. Soldados invadiram salas de aulas, também com metralhadoras e fuzis. Atiraram e lançaram bombas de gás lacrimogêneo, quebraram laboratórios, destruíram livros.

Ao ouvir gritos, o estudante de engenharia mecânica Waldemar Alves da Silva Filho chegou à varanda do andar superior do prédio principal, quando foi atingido por uma bala na cabeça. Ficou 10 dias em coma e dois meses internado. Perdeu um olho. 

A manifestação estudantil, inflamada com a prisão de Honestino, foi usada como pretexto para o uso da força indiscriminada. Mas ficou evidenciado que ela havia sido planejada com uso de tropas de todas as forças.

Rapidamente a universidade foi cercada por viaturas e caminhões com homens do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e das polícias Civil e Militar, além de agentes à paisana do temido Departamento de Ordem Política e Social (Dops). 

Em fila indiana, com as mãos na cabeça e sob mira de armas pesadas, cacetadas na cabeça, chutes e socos, cerca de 500 estudantes foram levados para a quadra de basquete. Houve uma triagem. Cerca de 60 foram levados para interrogatório. 

Tapas, socos, chutes e interrogatórios

Estudante de economia, o mineiro de Belo Horizonte Cláudio Antônio de Almeida foi um dos presos. Seguiu em um ônibus, com outros estudantes, para o prédio onde funcionava o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), no centro de Brasília.

No mesmo edifício ficava uma unidade do Dops, a polícia política encarregada de investigar, entre outras coisas, ações dos movimentos estudantis e das organizações clandestinas durante a ditadura.

Também naquele prédio funcionava o setor da censura, onde toda produção cultural tinha que ser submetida a análise de agentes da ditadura, que definiam o que poderia ser veiculado ou não.

“Me levaram para a garagem. Lá tinha várias celas, com estudantes presos e machucados. Mas não fiquei muito tempo ali. Me colocaram em um elevador e acabei em um dos andares superiores”, recordou Cláudio, em conversa com a reportagem.

“Quando entrei na sala, vi muito sangue. Os policiais se regozijaram. Um deles disse: ‘Olhe para o chão’. Era um recado, para eu saber o que me esperava. Recebi tapas no rosto, chutes. Era meu batismo de sangue”, prosseguiu.

Cláudio conta ainda que viu meninas serem agredidas. “Elas tinham os corpos totalmente manipulados pelos policiais. Eram crianças  recebendo tratamento estúpido de trogloditas”, ressaltou. 

Cláudio não ou um dia ali. Foi levado para o Pelotão de Investigações Criminais (PIC), no Batalhão de Polícia do Exército, no Setor Militar Urbano – mesmo local do acampamento pró-intervenção militar que culminou nos atos de 8 de janeiro de 2023.

“Logo que cheguei no PIC recebi um golpe nos ouvidos, conhecido como telefone sem fio, além de socos no estômago e tapas na cara. Me machucaram bastante”, conta Cláudio.

Após a primeira sessão de tortura, ele foi deixado em uma cela com outros estudantes da UnB. “Eles jogavam água na sala o tempo inteiro, para não nos deixar dormir. Estávamos exaustos. Lembro de meninas sangrando, em pânico”, relata.   

“Durante as torturas, faziam interrogatórios, com perguntas desconexas. Gritavam: ‘Você é um comunista. Muda pra Cuba, pra União Soviética!’. Eu sequer era filiado a partido político. Sequer sabiam quem era o meu pai”, comenta Cláudio.

Egresso do PSD de Juscelino Kubitschek, o pai dele era deputado pela Aliança Renovadora Nacional (Arena). Entre 1966 e 1979, só podia haver dois partidos no país: Arena, do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição.

“Meu pai decidiu ingressar na Arena por ter o maior número de pessedistas. Mas eu não engolia aquilo. Meu pai era um democrata, humanista, preocupado com a educação do país. Tanto que sempre respeitou minha posição”, destaca Cláudio. 

Acareação com Honestino e afogamentos

Em um momento, Cláudio foi levado para uma sala tomada por militares. “Vi entrar o Honestino [presidente da Feub], um menino com seus 20 anos, destruído, quase irreconhecível, com as roupas rasgadas e ensanguentadas”, lembra.  

Cláudio conta que Honestino era sustentado por “dois homens fortes”. “Ele estava com a cabeça caída, os olhos inchados e sem seus óculos. Não conseguia me enxergar. Mas um dos militares o perguntava se eu integrava a Ação Popular (AP).”

A Ação Popular foi um grupo de resistência à ditadura militar no Brasil, resultado principalmente da atuação dos militantes estudantis da Juventude Universitária Católica (JUC) e de outras agremiações da Ação Católica Brasileira.

Cláudio havia ingressado na AP quando estava no ensino médio e ainda morava com a família no Rio de Janeiro. Seu pai, Manoel José de Almeida, era deputado federal e a família se mudou para Brasília em maio de 1960, um mês após a inauguração da capital.

Honestino negou a responder aos questionamentos dos militares. O líder estudantil teve a cabeça afundada em um tambor de água várias vezes, sendo questionado, aos berros, logo em seguida. 

“Ele ficou desfalecido. Chamaram um médico para constatar se continuava vivo. Estava. Mas aquele garoto, apesar de tudo, negava-se a responder qualquer coisa. Vendo-o sofrer, eu lhe pedi para dizer a verdade, mas ele se recusou”, ressalta Cláudio.

Honestino foi levado. Cláudio voltou à cela. Mas, pouco depois, o estudante de economia seria submetido à sua pior sessão de tortura. “Levei choques elétricos em todo o corpo, inclusive na língua e nos testículos”, conta.

O torturador usava máscara. Um outro perguntava sobre organizações antiditadura. “Eu assumi que era da AP e tinha contatos em Uberaba (MG). Mas queriam nomes. Inventei alguns. Satisfeitos ou cansados, encerraram a tortura”, diz. 

Pai era da Arena, partido do governo militar

Cláudio ou três meses preso no PIC. Nesse tempo, foi levado a um coronel. “Comendo pizza, ele me disse que eu não havia soltado nada e que outros estavam ‘dando o serviço’, mas que havia gente graúda atrás de mim”, lembra.

O ex-estudante da UnB reconhece que, não fosse o pai deputado da Arena, poderia ter sido levado de Brasília e assassinado pelos militares, como aconteceu com tantos jovens naquele período. 

“Não fui o único. No primeiro dia no PIC, aram perguntando nas celas quem era maçom ou filho de maçom. Alguns levantaram o braço e foram soltos imediatamente. O mesmo aconteceu com o filho do general Golbery e de outros militares”, conta.

Golbery do Couto e Silva teve papel de destaque na conspiração que deu origem ao golpe de Estado no Brasil em 1964 e depôs o presidente João Goulart. Por isso ficou conhecido como “o bruxo” ou “feiticeiro” do golpe militar.

Já seu filho, Golbery do Couto e Silva Filho era estudante da UnB e foi preso, acusado de “subversivo”, durante a invasão ao campus em 1968. Não foi torturado. Antes de ser liberado, teria dito que só sairia com todos os colegas, sendo ignorado.

Para deixar o PIC, Cláudio teve que “ uns documentos”. “Primeiro, eu me recusei, pois sabia que ali havia confissões que eu jamais tinha feito. Mas, pressionado e com medo, acabei assinando algumas folhas sem nem poder ler”, conta. 

Respondendo dois inquéritos policiais militares e temendo ser pego pelo Dops, Cláudio foi para a casa de uma irmã. Percebendo que era seguido, ou à clandestinidade. Morou em cidades mineiras, sob proteção de padres.

Ele retornou à Brasília um ano depois. Retomou os estudos na UnB. Reencontrou Honestino, que estava na clandestinidade. “Ele queria saber se eu continuaria na luta. Respondi que não tinha condição. Minha mãe havia adoecido. Ele entendeu”, relata.

Mas Cláudio perdeu o emprego que tinha antes da prisão e custou a arrumar outro. Até o fim da ditadura, sofreu retaliações. Só nos anos 1990 conseguiu retomar o cargo de técnico no Senado, onde havia sido itido por meio de concurso.  

Já Honestino, assumiu vida clandestina em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em outubro de 1973, como presidente da UNE, desapareceu, após uma quarta prisão. Ele havia sido levado para o quartel do Batalhão de Polícia do Exército de Brasília.

Além de Honestino, Iara dos Santos Delgado e Paulo de Tarso Celestino são outros alunos da UnB na lista de desaparecidos políticos, vítimas da ditadura. 

Um militar no comando da instituição de ensino

Em 1976, o professor e oficial da Marinha José Carlos de Almeida Azevedo foi nomeado reitor da UnB. As manifestações recomeçaram. Alunos protestaram contra a má qualidade do ensino, a ociosidade nos laboratórios e a falta de professores.

O Senado formou uma comissão para cuidar do conflito, mas, em 6 de junho de 1977, a UnB foi novamente invadida por tropas militares, que prenderam estudantes e intimaram funcionários e professores. 

A universidade só deixou de sofrer intervenções com a abertura política, em 1984, quando Cristovam Buarque foi eleito reitor. Ele ainda foi governador do Distrito Federal e senador pela capital da República.