INVESTIGAÇÃO

Delação de Mauro Cid: Eduardo Bolsonaro tinha ‘tropa civil’ de CACs para dar golpe, apoiado por Michelle

Em depoimento, tornado público nesta quarta (19), ex-ajudante de ordens de Bolsonaro revelou planos levados ao ex-presidente para impedir a posse de Lula

Por Renato Alves
Publicado em 19 de fevereiro de 2025 | 14:08

BRASÍLIA – O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) poderia formar uma “tropa civil” de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) para ajudar em um golpe de Estado a favor do pai dele, Jair Bolsonaro (PL). A informação foi dada à Polícia Federal (PF) pelo tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente.

Tal plano foi narrado por Cid em um dos seus depoimentos à Polícia Federal, em delação premiada. Nesta quarta-feira (19), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), retirou o sigilo da delação. Cid é figura central nas investigações sobre o ex-presidente e seus aliados.

Entre outras coisas, Cid contou que um grupo de “radicais”, formado por políticos e militares próximos de Jair Bolsonaro, “afirmavam que o ex-presidente tinha o apoio do povo e dos CACs para dar o golpe.” Entre esses “radicais” estavam Eduardo e Michelle Bolsonaro, segundo Cid.

Ainda de acordo com o ex-ajudante de ordens, esses “radicais” “entendiam que os CACs apoiariam o ex-presidente em uma tomada de decisão, como um tropa, em caso de um golpe”. Ele disse ainda que era Eduardo Bolsonaro “quem tinha mais contato com os CACs", por isso caberia à ele convocar essas pessoas.

Durante eleições, Eduardo Bolsonaro convocou CACs

Em 5 de setembro de 2022, durante a campanha eleitoral, Eduardo Bolsonaro usou as redes sociais para convocar donos e frequentadores de clubes de tiro e todos que têm armas de fogo a se tornarem “voluntários do Bolsonaro”, na campanha pela reeleição do pai dele.

“Você comprou arma legal? Tem clube de tiro ou frequenta algum? Então você tem que se transformar num voluntário de Bolsonaro. Peça ao seu candidato a deputado federal adesivos e santinhos do Presidente, distribua. Em SP eu te envio. e e peça”, escreveu o filho do presidente da República no Twitter.

Ainda no post, Eduardo Bolsonaro pediu para os interessados entrassem em contato com seus candidatos a deputado federal para procurar adesivos ou santinhos contendo número e foto de Bolsonaro, para distribuir. 

O parlamento colocou, ao fim do texto, link de outra página da internet, que levava a um formulário em que os interessados deveriam preencher os dados pessoais, com endereços de e-mail e residencial, entre outros. 

Donos e frequentadores de clubes de tiros e os chamados CACs integravam a base de apoio de Jair Bolsonaro. Militar e armamentista convicto, ele cumpriu promessas de campanha com medidas que flexibilizaram normas para facilitar o o a armas de fogo e a munições no Brasil.

Confira quem fazia parte dos grupos recebidos por bolsonaro após derrota

Já Mauro Cid ainda disse em um depoimentos, acompanhado de três advogados, que, recluso após a derrota nas urnas, Jair Bolsonaro recebia diversas pessoas no Palácio do Alvorada, onde morava com a primeira-dama, Michelle, e a filha, Laura.

Cid dividiu em três grupos as pessoas que iam regularmente à residência oficial: 

  • “Bem conservador, de linha bem política”: aconselhava o presidente “a mandar o povo para casa, e colocar-se como um grande líder da oposição”, dizendo que seus apoiadores só queriam “um direcionamento”. Faziam parte dele o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o advogado-geral da União, Bruno Bianco, Ciro Nogueira (então ministro da Casa Civil) e o brigadeiro Batista Júnior (então Comandante da Aeronáutica). Outro grupo dentro deste defendia que Bolsonaro deixasse o Brasil. Cid citou o empresário do agronegócio Paulo Junqueira e o ex-secretário de Assuntos Fundiários Luiz Antonio Nabhan Garcia. Junqueira organizou a viagem de Bolsonaro e família para os EUA no fim do mandato;
  • “Pessoas moderadas”: que, “apesar de não concordar com o caminho que o Brasil estava indo, com abusos jurídicos, prisões e não concordar com a condução das relações institucionais que ocorriam no país”, entendiam que nada poderia ser feito diante do resultado das eleições. Esse grupo era composto basicamente por generais da ativa que tinham mais contato com Bolsonaro, formado pelos generais Freire Gomes (comandante do Exército), Paulo Sérgio Nogueira (ministro da Defesa), Júlio César de Arruda, entre outros. 
  • “Radicais”: Estava dividido, de acordo com Mauro Cid. Uma turma queria encontrar provas de fraude nas eleições. Dela faziam parte o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), o major da reserva do Exército Angelo Martins Denicoli, o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e “um grupo de pessoas que prestavam assessoramento técnico”. O outro grupo “era a favor de um braço armado”. O tenente-coronel disse que essas pessoas ‘romantizavam” o artigo 142 da Constituição Federal – dispositivo que regulamenta a atuação das Forças Armadas – como fundamento para um golpe e acreditavam que, se colocasse a ideia em prática, Bolsonaro “teria apoio do povo e dos CACs (Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores)”. Fariam parte desse grupo Filipe Garcia Martins, ex-assessor especial da Presidência, os ex-ministros Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e Gilson Machado (Turismo), os senadores Jorge Seif (PL-SC) e Magno Malta (PL-ES), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e o general Mário Fernandes, apontado pela PF como autor do plano “Punhal Verde e Amarelo”.

Mauro Cid ressaltou que, apesar da insistência de Bolsonaro, o grupo nunca achou nenhuma irregularidade no sistema eleitoral brasileiro. 

Apesar de terem sido citados por Mauro Cid, nem Michelle e nem Eduardo Bolsonaro foram indiciados pela PF em novembro ou denunciados pela PGR na terça. Também não há menção a elementos e provas, ao menos neste primeiro depoimento. 

Cid falou em ‘doideira’ que seria assinada por Bolsonaro

Mauro Cid narrou a gestação da “doideira” que deveria ser assinada por Bolsonaro. A “doideira”, segundo Cid, começou em novembro de 2022, após o segundo turno, quando Filipe Martins, então assessor internacional de Bolsonaro, levou ao presidente em várias ocasiões um jurista – o tenente-coronel disse não lembrar o nome. Essas conversas resultaram num “documento que tinha várias páginas de considerandos” e “prendia todo mundo”.

Na lista dos alvos estavam os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, o senador Rodrigo Pacheco (PP-MG) e “outras autoridades que de alguma forma se opunham ideologicamente ao ex-presidente”. Seria anulada a eleição e fechados o STF e o Congresso. Cid afirmou que Bolsonaro “recebeu o documento, leu e alterou as ordens, mantendo apenas a prisão do ministro Alexandre de Moraes e a realização de novas eleições devido a fraude no pleito”. 

Com a chamada “minuta do golpe” pronta como considerou adequada, Bolsonaro convocou ao Alvorada os comandantes das três forças militares e mostrou-lhes o documento. Cid contou aos investigadores que foi ele quem cuidou da apresentação por PowerPoint. Disse que saiu da sala após terminada a apresentação por parte do presidente. Voltou a tempo de ouvir as considerações dos comandantes.

“Nessa reunião com os generais, o presidente apresentou apenas os ‘considerandos’ [fundamentos das medidas que seriam adotadas no golpe] sem mostrar as ordens a serem cumpridas [como a prisão de Alexandre de Moraes e a anulação da eleição de 2022]”, disse Mauro Cid. ‘O ex-presidente queria pressionar as Forças Armadas para saber o que estavam achando da conjuntura.”

“O almirante Garnier [Almir Garnier Santos] era favorável a uma intervenção militar, afirmava que a Marinha estava pronta para agir, aguardava apenas a ordem do presidente Bolsonaro. No entanto, o almirante Garnier condicionava a ação de intervenção militar à adesão do Exército, pois não tinha capacidade sozinho”, relatou Cid em seu depoimento. 

Por outro lado, Baptista Júnior, da Aeronáutica, disse que “era terminantemente contra qualquer tentativa de golpe de Estado e afirmava de forma categórica que não ocorreu qualquer fraude nas eleições presidenciais.” O general Freire Gomes era, segundo Cid, um “meio-termo”. “Ele não concordava como as coisas estavam sendo conduzidas; que no entanto, entendia que não caberia um golpe de Estado, pois entendia que as instituições estavam funcionando; que não foi comprovado fraude nenhuma.”

Mauro Cid só delatou Braga Netto após correr risco de perder benefício

Mauro Cid teve que prestar vários outros depoimentos e quase teve seu acordo de delação anulado após investigação da PF descobrir, por meio de celulares e laptops apreendidos com ele e outros investigados, informações relevantes que teriam sido omitidas pelo tenente-coronel. 

O acordo de delação de Cid foi firmado pela PF e homologado pelo ministro Alexandre de Moraes em 9 de setembro de 2023. Pressionado, Cid prestou um novo depoimento diretamente a Moraes, em novembro do ano ado, quando entregou o general Walter Braga Netto, que acabou sendo preso no fim de 2024.

No primeiro anexo de sua delação, Cid afirmou apenas que Braga Netto era o “elo entre os manifestantes e o ex-presidente”. À frente de Moraes, o tenente-coronel disse que Braga Netto entregou dinheiro a “kids pretos” para financiar o plano de execução do próprio ministro, de Lula e do vice Geraldo Alckmin, em 2022

Mauro Cid ainda acusou o general, que concorreu à vice na chapa de Bolsonaro em 2022, de tentar influenciar sua delação. Foi esta declaração que mais pesou na ordem para prender Braga Netto. Já “kids pretos” são os integrantes das Forças Especiais do Exército, treinados para ações clandestinas, incluindo golpe de Estado. 

A delação de Mauro Cid foi usada também em outras investigações. O ex-ajudante de ordens confirmou a existência do chamado “gabinete do ódio” na estrutura do governo Bolsonaro, itiu a falsificação de comprovantes de vacinação contra Covid-19 para um grupo de pessoas, incluindo o ex-presidente e a filha Laura, e afirmou que recebeu “determinação” do então presidente para avaliar o valor de um relógio Rolex e autorização para vendê-lo junto com outros itens que compunham um kit de joias valiosas dado pela Arábia Saudita como presente oficial.