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Ouro de Minas: chefs celebram a importância e versatilidade do milho em suas receitas
Celebrado no dia 24 de maio e Patrimônio Imaterial de Minas Gerais, ingrediente remete às migrações dos povos originários pelas Américas há mais de 5 mil anos
Uma velha, de preferência desdentada, mastiga os grãos de milho antes que eles sejam devolvidos para promover a fermentação. A história está narrada no Códice Costa Matoso, reunião de 139 documentos manuscritos, 5 impressos e um registro cartográfico feitos por Caetano da Costa Matoso, ouvidor da comarca de Ouro Preto no século XVIII, e explica o processo de criação da catimpuera, bebida à base de milho muito tradicional à época, popular em comunidades indígenas. O “estranhamento diante desse fato surreal” é provocado, segundo a chef e historiadora Ju Duarte, “pelo nosso olhar de hoje”.
Se os usos e costumes mudaram, o milho, cujo dia nacional é comemorado neste sábado (24), inevitável nas festas juninas, permanece como pilar da nossa culinária. Tanto que, ao tornar-se Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais, há dois anos, a cozinha mineira deveu o título ao registro dos sistemas culinários do milho e da mandioca no Estado.
Originário da região amazônica e datado desde mais de 5 mil anos antes de Cristo, o milho espalhou-se pelas Américas graças aos povos originários, que, em razão de seu poder nutritivo, carregavam seus grãos durante as migrações.
“O milho é riquíssimo, ele é a dádiva da América Latina. É um alimento muito diverso, que pode ser comido verde, cozido, serve para o preparo de farinhas, como o fubá, temos a canjica, a canjiquinha, a canjica de milho branco, e até a pipoca, que é muito antiga, existe desde o século XVIII, não foi inventada com o cinema”, brinca Ju Duarte.
À frente da Cozinha Santo Antônio, ela criou um prato em homenagem à revolucionária Maria da Cruz, que, em 1736, liderou um motim contra a Coroa Portuguesa e suas abusivas cobranças de impostos. Uma das motivações foi questionar “porque Tiradentes se tornou um herói nacional e a história de Maria da Cruz ficou esquecida”.
Culinariamente, a contestação aparece no uso da carne de boi em contraposição à ideia de que “o mineiro só come porco e frango”, tendo “o milho e a mandioca como base da nossa alimentação”. Outro destaque de seu cardápio à base de milho é o fubá suado, que, “assim como o angu, são alimentos de sustento”.
“Eu falo que são comidas de resistência. Ao longo da nossa história, muitas vezes não havia fartura de alimento, e essas comidas, que davam uma sensação de saciedade, eram muito utilizadas para trabalhar”, conta. Ela, no entanto, serve o fubá suado com um picolé da mineira (a famosa costelinha com o osso aparente), e um molho de chocolate de laranja.
Ao criar a receita, Ju Duarte acabou surpreendendo suas cozinheiras, que, recorrendo a memórias da infância, se espantaram com “a ousadia de vender fubá suado”, um alimento que só ia para a mesa quando não havia o que comer. “É muito importante a gente trazer essa ressignificação dos alimentos e valorizar comidas que, em outros tempos, contavam outras histórias. Tradição não é repetição, tradição é transmissão. As raízes nos sustentam para que a gente possa florescer”, afirma a historiadora e chef, ao dialogar com o ado propondo um novo olhar para o presente.
Crioulo
A perspectiva é a mesma do engenheiro agrônomo Lucas de Souza. Dedicado à agricultura orgânica há mais de 15 anos, ele criou, em 2019, o Projeto Crioulo na Fazenda Vista Alegre, em Capim Branco, interior de Minas Gerais. Chamados de crioulos, os grãos de milho que não foram apropriados pela indústria e conservam sua característica natural sempre encantaram Lucas “pela variedade de tamanhos, cores e sabores”.
Ao ser apresentado a uma semente de milho preto de pipoca, ele deu o pontapé em sua empreitada, percebendo “o potencial comercial que aquelas espigas de grão bem escuro” detinham. Na sequência, chegou o milho vermelho, maior, mais encorpado, próprio para fubá, e o projeto deslanchou.
Lucas acredita que, “somente por meio do consumo é possível resgatar o cultivo dessas variedades”. “Hoje, com o milho industrial, a gente perdeu praticamente toda a diversidade desse grão”, lamenta. Atualmente, ele tem como aliados tanto agricultores familiares com quem realiza trocas de grãos quanto a internet como “fonte de busca de variedades e parceiros”.
“A indústria não faz uma seleção pensando no sabor, mas na produtividade. E os grãos crioulos oferecem uma infinidade de cores, sabores, texturas”, salienta Lucas, exemplificando que “o milho vermelho tem um sabor mais intenso e quatro vezes mais teor de ferro do que os convencionais”. “Tem uma questão de saúde também”, assinala. Já a suavidade do milho branco tem se combinado com perfeição à produção de farinhas e pães, o que os têm levado a diversos restaurantes.
“Esse cultivo de variedades crioulas traz o milho de volta para ser um ingrediente protagonista na cozinha mineira, como era tradicionalmente”, aponta o engenheiro. Mariana Gontijo é uma das entusiastas do Projeto Crioulo. Chef no restaurante Roça Grande, ela não hesita ao descrever sua paixão pelo cereal. “Se me mandassem para uma ilha deserta e eu pudesse levar só um ingrediente, seria o milho!”, diverte-se.
Natural de Moema, no Centro-Oeste de Minas, ela foi uma criança habituada a saracotear por entre as plantações de milho no sítio do pai. Os rituais de infância incluíam juntar milho verde para fazer pamonha, mingau e comê-lo assado na brasa do fogão à lenha. Derivados como fubá mimoso, fubá moinho d’água, canjica doce, canjiquinha, broinha e pipoca não eram menos comuns na cozinha de sua família
Generosidade
Mariana também define o fubá como “um alimento de resistência que salvou a vida de muita gente e alimentou dos escravizados aos sertanejos”. Nas quitandas que prepara no restaurante, o milho tem presença garantida, seja refogado, como canjica, canjiquinha ou através dos fubás, que ela faz questão de diferenciar.
“O fubá de canjica tem uma consistência mais delicada, o moinho d’água traz um aspecto mais rústico às broas e é o melhor para fazer fubá suado (cozido diretamente na a com um pouco d’água), já o mimoso vai te dar um bolo mais cremoso”, compara. Outra notória qualidade do milho seria a capacidade de se adequar a pratos doces e salgados.
“A pamonha era tanto merenda quanto sobremesa. O angu era feito sem sal e depois poderia ser consumido com açúcar e o mingau era feito a partir daquela raspinha da a onde se fazia o angu, com o acréscimo de açúcar e canela”. Focada na “preservação das técnicas tradicionais”, Mariana aprendeu com a avó o bolinho de fubá de canjica, uma variação do bolinho de chuva. “Estou salivando só de lembrar”, ite.
Ela recupera o poema “Oração do Milho”, de Cora Coralina, que diz: “Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres”. Mariana concorda, e acrescenta: “O milho é tão generoso que aparece tanto em pratos rebuscados, cheios de proteína, quanto na refeição dos animais do jugo, como a Cora Coralina sublinha”.
Tudo isso justifica porque no restaurante Trintaeum o milho “é uma estrela que nos ajuda a manter viva a alma de Minas Gerais”, garante a chef Ana Gabi Costa. Ali, o milho comparece de diversas formas. No frango com quiabo, ele “se transforma em um angu lavado de milho verde, que é delicado e cremoso, contrastando com a riqueza do caldo apurado do frango”, detalha. No caso das sobremesas, a utilização não é menos apetitosa. O Curau de Laranja aposta em uma releitura do curau de milho verde, “com um toque cítrico e inusitado”.
“Nele, apresentamos um curau de milho verde cremoso, servido com uma broa de fubá que faz toda a diferença. Para complementar, uma calda de laranja fresca e um crocante de canela. É uma sobremesa que resgata a doçura do milho e a memória afetiva do curau”, afiança Ana Gabi, para quem o milho a “remete à infância em Pedro Leopoldo”. “É um sabor de aconchego”, ressalta.
Doçura
A mineira Patrícia Werneck é proprietária do Nomo, em São Paulo, que integra o Guia Michelin na categoria Bib Gourmand, distinção para restaurantes que oferecem um ótimo custo-benefício. Patrícia revela que, em seu estabelecimento, “a inspiração veio menos da tradição mineira em si e mais do encontro com um milho naturalmente doce, de sabor surpreendente”.
A partir daí, o chef Nando Carneiro criou a polenta de milho doce, “que fica entre uma pamonha e um creme de milho”, e o milho casquerado na brasa com manteiga de curry, “que uma vez um crítico disse que era ‘só um milho’ e a gente amou!”, gargalha Patrícia. “Sim, é só um milho, mas com muito sabor, textura, potência e elegância”, diz.
De outra feita, eles investiram em “um picolé de milho com chocolate branco e pipoca doce”, que Patrícia elege como seu predileto. “O milho, com toda sua simplicidade, vira matéria prima para provocar o paladar”, sugere a entrevistada, que toma a polenta de milho doce como ícone dessa expressão. “Cada garfada é um abraço e um sorriso mole”, poetiza ela, orgulhosa de ter uma cozinha dedicada a “criar algo novo, potente e cheio de borogodó, a partir de um ingrediente tão humilde como o milho”.
Latina
Chef na Casa Gabo, cujo nome repete o apelido do escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) e entrega a homenagem à culinária latino-americana, Ornela Mattos lembra que o milho representava “o próprio vínculo com a terra” dos povos originários. “Quando a gente fala em milho, está falando de memória, de ancestralidade, de ciclos agrícolas e rituais”, destaca.
Para referendar sua fala, ela aborda o sistema das Três Irmãs utilizado por muitos povos indígenas, no qual milho, feijão e abóbora eram plantados juntos, “se ajudando mutuamente a crescer”. “O milho dá sustentação, o feijão enriquece o solo com nitrogênio, e a abóbora cobre o chão, protegendo da seca e das ervas daninhas”, explica Ornela.
Enquanto o milho roxo no Peru “é base para a chicha morada, uma bebida aromática e lindamente colorida”, em terras mexicanas “o cacahuazintle vira a base do pozole, uma sopa rica em história e simbolismo”. “Já na América Central, tem o atol, uma bebida cremosa feita com milho moído. E mesmo aqui no Brasil, se a gente olhar com atenção, vê que o milho tem muitos sotaques, do curau ao mingau, do angu ao bolo, da broa à pipoca, ando pelo cuscuz”, enumera a chef.
“Usar o milho é um gesto de resistência e afeto. Ele nos ensina sobre diversidade, adaptação e cuidado com a terra. Celebrar o milho é valorizar os saberes antigos e manter viva uma rede de produtores, receitas e memórias. Seja no restaurante ou no fogão de casa, cozinhar com milho é, no fundo, um jeito de contar uma história que começou muito antes da gente, e que merece ser celebrada”, arremata Ornela.
Serviço
Restaurante Trintaeum (rua Professor Antônio Aleixo, 20, Lourdes)
Roça Grande (rua São Paulo, 1.700, Lourdes)
Cozinha Santo Antônio (rua Domingos do Prata, 453)
Casa Gabo (avenida Cristóvão Colombo, 336, Funcionários)